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RÉPLICA
O óbvio e o esperado na Bienal de Arquitetura
FERNANDO VÁZQUEZ
especial para a Folha
Tive uma ingrata surpresa e
uma enorme insatisfação quando
li um artigo na Folha (26/12/99)
em que o dramaturgo Gerald
Thomas comentava sua visita à 4ª
Bienal de Arquitetura.
Ingrata surpresa porque considero Thomas uma personalidade
inquietante, que, sem dar lugar a
dúvidas, sabe como "seduzir" e
"chocar" o público preocupado
com a "fragmentada experiência"
de nosso fin de siècle. Enorme insatisfação quando vejo a falta de
rigor com que um intelectual de
seu porte se refere a uma exposição tão bem sucedida.
Com efeito, não se compreende
uma matéria sobre a Bienal, ou
sobre qualquer outro tema, que
não diga nada que tenha uma mínima transcendência, muito menos sendo de autoria de uma personalidade pública e formadora
de opinião. Chama a atenção,
também, que o artigo em questão
tenha no fim uma nota de "avaliação", neste caso uma bolinha preta de "ruim".
E eu me pergunto, qual é a capacitação, a formação, a informação, a dedicação e a qualidade de
"expert" que Gerald Thomas tem
para avaliar uma exposição de arquitetura? Porque, sejamos claros, para avaliar com seriedade
um evento dessa natureza, não
basta que, ao autor, "poucas coisas lhe interessem tanto como a
arquitetura".
O autor tem que saber -conhecer, estudar, refletir, pensar, escrever- sobre o assunto. Se não
for este o caso, o que se tem é um
amador, um "crítico de fim-de-semana", cuja opinião tem o valor
de qualquer outra opinião, o que
vulgarmente se conhece como
"uma questão de gosto".
Especificamente com relação às
exposições Mies van der Rohe e
Frank Gehry, o que quis dizer
Thomas quando afirmou que o
material exposto "não passa do
mais óbvio e esperado" ? Qual é o
material mais óbvio da obra de
Mies- um dos três arquitetos
mais importantes do século XX ?
Para um "expert", que estuda a
obra desse grande mestre durante
anos, talvez todas as obra do arquiteto seriam material "óbvio e
esperado", porque o estudioso do
tema conhece cada centímetro
projetado ou construído pelo arquiteto. Para um homem interessado em arquitetura, talvez umas
10 obras, as mais significativas ou
representativas das intenções
criativas do arquiteto. Para o
grande público, talvez nenhuma,
porque o leigo nada espera de
quem não conhece.
"Óbvio e esperado", em geral,
nada quer dizer. É uma expressão
de efeito, porém oca, vazia de sentido, sem nenhuma significação
se não se faz referência ao receptor. É óbvio para quem? É esperado por quem? Quem esperava
uma exposição de Mies van der
Rohe, ou ainda, exposições sobre
Alvar Aalto, Aldo Van Eyck, Clorindo Testa e Villanueva, só para
citar algumas das que ocupam a
Bienal ?
A exposição Mies van der Rohe,
por exemplo, apresenta 41 obras
do arquiteto, incluindo peças raras até para os especialistas, como
as primeiras casas em Berlim, de
estilo eclético. Mesmo famosas
obras, como o Pavilhão de Barcelona e a Casa Tugendhat, foram
mostradas de forma inédita, através de imagens da reconstrução
do edifício do Pavilhão e da restauração da casa Tugendhat, ambas realizadas em 1986 e nunca
antes exibidas.
Dentro do conjunto das obras
do chamado período americano,
além do conhecido exemplo do
Seagram, cabe destacar as desconhecidas fotos do Campus do Illinois Institut of Technology. Digo
"desconhecidas" não porque o
edifício do Alumni Memorial
Hall, a Capela, ou o Crown Hall
sejam "desconhecidos", mas porque nunca foram expostas ou publicadas fotos atuais destes edifícios. As fotografias da exposição
foram tomadas no ano passado
por um fotógrafo contratado pela
Editorial Blau de Portugal, patrocinadora da sala.
Ainda para eliminar qualquer
outro resquício de obviedade na
montagem e na proposta desta
sala, gostaria de lembrar que também faz parte da mostra o projeto
para o consulado norte-americano em São Paulo, peça chave da
relação que Mies manteve com o
Brasil. Este projeto, não construído (1957/62), é desconhecido e,
fora do Arquivo Mies van der Rohe, nunca foi exibido em uma exposição. No mesmo sentido, também foram expostas fotos da sala
Mies van der Rohe da V Bienal de
Arte, de 1959, encontradas em
pesquisa realizada no Arquivo
Histórico da Fundação Bienal,
por ocasião da concepção da sala
em questão, e, portanto, absolutamente inédito.
Tudo isto dentro de uma proposta museográfica que leva o espectador, entre cortinas de seda e
painéis divisórios agrupados seguindo um layout tipicamente
miesiano, a passear por dentro de
uma maqueta, em escala real, da
sala de representação do Pavilhão
de Barcelona, com mobília, tapetes, colunas de aço e divisórias de
grandes vidros coloridos. Além
disso, é possível ver uma importante coleção de livros desconhecidos no Brasil e ainda traduções
em português inéditas de 5 textos
fundamentais na construção do
pensamento do arquiteto.
Enfim, poderia me estender
muito mais discutindo as imprecisões do artigo de Thomas, como
por exemplo a sugestão de fazer
uma "conexão" entre Gehry e
Mies, quando é muito mais que
"óbvio e esperado" que possa ser
feita qualquer conexão entre Mies
e qualquer arquiteto do século
XX, pois por isso Mies é um
Maestro de estatura universal. Ou
as referências a Philip Johnson,
que só podem vir de um leitor da
revista Times, jamais de um conhecedor da arquitetura.
Por outro lado, quando Thomas
sugere que é melhor não fazer nada se os recursos são poucos, esquece o país onde vivemos. Aqui
não é Alemanha. Evidentemente,
a falta de dinheiro afeta o produto
final. No entanto, se por falta de
verbas não se pode fazer uma
uma Bienal de Veneza, não significa que não faremos nada. Pelo
contrário, é nossa obrigação, sim,
forçar as estruturas para produzir
bienais de arquitetura, de arte, de
teatro, de cinema, e todas as bienais que sejam necessárias para
incrementar e ampliar nosso panorama cultural, nosso leque de
possibilidades de informação e de
formação, de criação e de divulgação.
Esta não é uma posição ideológica frente ao problema da cultura e sim uma atitude cultural que
preenche os vazios ideológicos
deixados, por exemplo, pela sedução simples proposta por Thomas. Construir uma tradição de
reflexão cultural requer tempo e
trabalho acumulativo. "Não fazer" tira de nós a oportunidade de
realizar esta acumulação originária de capital cultural.
Fernando Vázquez é doutor em arquitetura
pela Universidad Politécnica de Madrid e curador da sala especial "Mies van der Rohe"
na 4ª Bienal Internacional de Arquitetura de
São Paulo
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