São Paulo, Quinta-feira, 20 de Janeiro de 2000


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RÉPLICA
O óbvio e o esperado na Bienal de Arquitetura

FERNANDO VÁZQUEZ
especial para a Folha

Tive uma ingrata surpresa e uma enorme insatisfação quando li um artigo na Folha (26/12/99) em que o dramaturgo Gerald Thomas comentava sua visita à 4ª Bienal de Arquitetura.
Ingrata surpresa porque considero Thomas uma personalidade inquietante, que, sem dar lugar a dúvidas, sabe como "seduzir" e "chocar" o público preocupado com a "fragmentada experiência" de nosso fin de siècle. Enorme insatisfação quando vejo a falta de rigor com que um intelectual de seu porte se refere a uma exposição tão bem sucedida.
Com efeito, não se compreende uma matéria sobre a Bienal, ou sobre qualquer outro tema, que não diga nada que tenha uma mínima transcendência, muito menos sendo de autoria de uma personalidade pública e formadora de opinião. Chama a atenção, também, que o artigo em questão tenha no fim uma nota de "avaliação", neste caso uma bolinha preta de "ruim".
E eu me pergunto, qual é a capacitação, a formação, a informação, a dedicação e a qualidade de "expert" que Gerald Thomas tem para avaliar uma exposição de arquitetura? Porque, sejamos claros, para avaliar com seriedade um evento dessa natureza, não basta que, ao autor, "poucas coisas lhe interessem tanto como a arquitetura".
O autor tem que saber -conhecer, estudar, refletir, pensar, escrever- sobre o assunto. Se não for este o caso, o que se tem é um amador, um "crítico de fim-de-semana", cuja opinião tem o valor de qualquer outra opinião, o que vulgarmente se conhece como "uma questão de gosto".
Especificamente com relação às exposições Mies van der Rohe e Frank Gehry, o que quis dizer Thomas quando afirmou que o material exposto "não passa do mais óbvio e esperado" ? Qual é o material mais óbvio da obra de Mies- um dos três arquitetos mais importantes do século XX ?
Para um "expert", que estuda a obra desse grande mestre durante anos, talvez todas as obra do arquiteto seriam material "óbvio e esperado", porque o estudioso do tema conhece cada centímetro projetado ou construído pelo arquiteto. Para um homem interessado em arquitetura, talvez umas 10 obras, as mais significativas ou representativas das intenções criativas do arquiteto. Para o grande público, talvez nenhuma, porque o leigo nada espera de quem não conhece.
"Óbvio e esperado", em geral, nada quer dizer. É uma expressão de efeito, porém oca, vazia de sentido, sem nenhuma significação se não se faz referência ao receptor. É óbvio para quem? É esperado por quem? Quem esperava uma exposição de Mies van der Rohe, ou ainda, exposições sobre Alvar Aalto, Aldo Van Eyck, Clorindo Testa e Villanueva, só para citar algumas das que ocupam a Bienal ?
A exposição Mies van der Rohe, por exemplo, apresenta 41 obras do arquiteto, incluindo peças raras até para os especialistas, como as primeiras casas em Berlim, de estilo eclético. Mesmo famosas obras, como o Pavilhão de Barcelona e a Casa Tugendhat, foram mostradas de forma inédita, através de imagens da reconstrução do edifício do Pavilhão e da restauração da casa Tugendhat, ambas realizadas em 1986 e nunca antes exibidas.
Dentro do conjunto das obras do chamado período americano, além do conhecido exemplo do Seagram, cabe destacar as desconhecidas fotos do Campus do Illinois Institut of Technology. Digo "desconhecidas" não porque o edifício do Alumni Memorial Hall, a Capela, ou o Crown Hall sejam "desconhecidos", mas porque nunca foram expostas ou publicadas fotos atuais destes edifícios. As fotografias da exposição foram tomadas no ano passado por um fotógrafo contratado pela Editorial Blau de Portugal, patrocinadora da sala.
Ainda para eliminar qualquer outro resquício de obviedade na montagem e na proposta desta sala, gostaria de lembrar que também faz parte da mostra o projeto para o consulado norte-americano em São Paulo, peça chave da relação que Mies manteve com o Brasil. Este projeto, não construído (1957/62), é desconhecido e, fora do Arquivo Mies van der Rohe, nunca foi exibido em uma exposição. No mesmo sentido, também foram expostas fotos da sala Mies van der Rohe da V Bienal de Arte, de 1959, encontradas em pesquisa realizada no Arquivo Histórico da Fundação Bienal, por ocasião da concepção da sala em questão, e, portanto, absolutamente inédito.
Tudo isto dentro de uma proposta museográfica que leva o espectador, entre cortinas de seda e painéis divisórios agrupados seguindo um layout tipicamente miesiano, a passear por dentro de uma maqueta, em escala real, da sala de representação do Pavilhão de Barcelona, com mobília, tapetes, colunas de aço e divisórias de grandes vidros coloridos. Além disso, é possível ver uma importante coleção de livros desconhecidos no Brasil e ainda traduções em português inéditas de 5 textos fundamentais na construção do pensamento do arquiteto.
Enfim, poderia me estender muito mais discutindo as imprecisões do artigo de Thomas, como por exemplo a sugestão de fazer uma "conexão" entre Gehry e Mies, quando é muito mais que "óbvio e esperado" que possa ser feita qualquer conexão entre Mies e qualquer arquiteto do século XX, pois por isso Mies é um Maestro de estatura universal. Ou as referências a Philip Johnson, que só podem vir de um leitor da revista Times, jamais de um conhecedor da arquitetura.
Por outro lado, quando Thomas sugere que é melhor não fazer nada se os recursos são poucos, esquece o país onde vivemos. Aqui não é Alemanha. Evidentemente, a falta de dinheiro afeta o produto final. No entanto, se por falta de verbas não se pode fazer uma uma Bienal de Veneza, não significa que não faremos nada. Pelo contrário, é nossa obrigação, sim, forçar as estruturas para produzir bienais de arquitetura, de arte, de teatro, de cinema, e todas as bienais que sejam necessárias para incrementar e ampliar nosso panorama cultural, nosso leque de possibilidades de informação e de formação, de criação e de divulgação.
Esta não é uma posição ideológica frente ao problema da cultura e sim uma atitude cultural que preenche os vazios ideológicos deixados, por exemplo, pela sedução simples proposta por Thomas. Construir uma tradição de reflexão cultural requer tempo e trabalho acumulativo. "Não fazer" tira de nós a oportunidade de realizar esta acumulação originária de capital cultural.


Fernando Vázquez é doutor em arquitetura pela Universidad Politécnica de Madrid e curador da sala especial "Mies van der Rohe" na 4ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo

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