São Paulo, Quinta-feira, 20 de Janeiro de 2000


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MÚSICA ERUDITA CRÍTICA
CD traz gravação "inigualável" de Pergolesi

ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas


Um catálogo das obras completas de Pergolesi (1710-36) foi publicado pela primeira vez em 1942 e listava 148 composições. Como se sabe agora, 69 delas eram de outros compositores, 49 de autoria questionável e só 30 comprovadamente desse gênio barroco napolitano.
O fato de existirem tantas obras erroneamente atribuídas a ele só ressalta o renome de sua música na época. Morto, provavelmente de tuberculose, aos 26 anos de idade, Pergolesi não deixou um número suficiente de composições para satisfazer o desejo do mundo, que fez o que pôde para compensar essa falta.
Ninguém fez mais do que Stravinski (1882-1970), cujo balé "Pulcinella" é todo ele uma recriação da música de Pergolesi, 200 anos depois (para ser mais exato: dos 21 movimentos, só 10 são do italiano; mas Stravinski não tinha como saber disso). "Descobrir essa música significou uma primeira olhada para o passado... mas também uma visão no espelho."
Talvez não haja mais, entre nós, outro compositor capaz de espelhar Pergolesi. Mas seu nome já faz parte da música do século 20, assim como do 18; e sabe-se lá como não vai ser recriado na do século 21.
Escrito num monastério, durante seu último ano de vida, o "Stabat Mater", para soprano, contralto e orquestra, é sua peça mais conhecida, juntamente com a pequena ópera-bufa "La Serva Padrona" (recentemente filmada por Carla Camurati).
A partitura mais publicada de seu tempo foi tida desde logo como exemplo supremo de uma "nova" música eclesiástica: o estilo "galante" aplicado à liturgia. Menos preocupada com a polifonia, mais próxima do modelo instrumental do concerto, que concede ênfase às melodias, essa arte mereceu a homenagem também suprema de Johann Sebastian Bach, que a adaptou para seus próprios fins (com o nome "Tilge, Höchster, Meine Sunden").
"Pergolesi nasceu; e a verdade se fez conhecer", escreveu o compositor Grétry. "O dueto inicial é o mais perfeito e comovente jamais dado à pena de um compositor", sentenciou ninguém menos do que Jean-Jacques Rousseau -no contexto de uma querela célebre, entre os defensores da vanguarda italiana, de um lado, e da tradição operística francesa, do outro.
Que tais elogios digam respeito a tão poucas obras, criadas em meros seis anos de carreira, dá a medida dessa carreira e da música, que agora recebe uma homenagem de outra ordem, com essa gravação.
Pode-se cantar de outra forma -é o caso de Margaret Marshall e Lucia Terrani, na gravação "romântica" de Claudio Abbado, com a LSO. Pode-se cantar parecido: a interpretação "autêntica" de Emma Kirkby e James Bowman, com The Academy of Ancient Music.
Mas dificilmente alguém hoje canta o "Stabat Mater" melhor do que a soprano Barbara Bonney e o contratenor Andreas Scholl, intérpretes predestinados dessa música de destino exemplar, sobre o mais exemplar dos destinos (o texto latino narra a crucificação de Jesus, do ponto de vista de Maria).
Há um mistério insondável no encontro de uma voz com uma palavra, com uma melodia. O tom do canto se multiplica em sentidos, nas pequenas viradas e mínimas curvas da música. "Supplicio", "lacrimosa", "flagellis", "gementes", "inflammatus": cada palavra extrai música da música; e cada compasso, cantado, faz coincidir essa música com suas palavras, segundo um princípio que não tem nome, mas que talvez possa ser chamado de Pergolesi.
Isso vale tanto para o "Stabat Mater" quanto para os dois "Salve Regina": um, bem conhecido, em fá menor, também escrito nos últimos dias do compositor (cantado por Scholl); o outro, em lá menor, de caráter menos sombrio, mas não menos tocante (com a solista Bonney).
Les Talents Lyriques, orquestra criada no início da década de 90 por Christophe Rousset, tem como ninguém o sentido do barroco napolitano, que é sua especialidade. Oxalá houvesse mais regentes como Rousset: regendo sempre a favor da música, sem fazer favor à música.
O início desse disco é um momento na vida de qualquer ouvinte. As cordas graves estabelecem o padrão "peregrino" típico das cantatas barrocas. Violinos descem do vazio, numa sucessão de dissonâncias (segundas menores e maiores). O contratenor entoa a palavra "stabat" e a soprano entra em seguida, uma segunda acima.
O efeito pode não ser completamente original, mas é incomparável. Essa descrição não diz nada. A música diz tudo.
Entre os que a escutaram, e fizeram alguma coisa, estão alguns contemporâneos de Pergolesi, como Francesco Durante e Leonardo Leo, nomes meio encantados, que hoje pertencem mais aos dicionários do que à memória viva das platéias.
Mas quem recompõe o drama musical de Pergolesi, em bases próprias, é Mozart -não por acaso no "Réquiem", escrito igualmente em seus últimos dias de vida. Isso que passa de um a outro, esse espírito que não tem definição, mas tem palavras, canto e melodias, é uma grandeza particular da música, "a verdade que se faz conhecer" -e é toda a verdade que nos cabe, na música e fora dela.


Avaliação:     


Disco: Stabat Mater - Giovanni Batista Pergolesi
Orquestra: Les Talents Lyriques
Gravadora: Decca (importado)
Onde encomendar: www.amazon.com


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