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MÚSICA ERUDITA CRÍTICA
CD traz gravação "inigualável" de Pergolesi
ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas
Um catálogo
das obras completas de Pergolesi (1710-36) foi
publicado pela
primeira vez em
1942 e listava 148 composições.
Como se sabe agora, 69 delas
eram de outros compositores, 49
de autoria questionável e só 30
comprovadamente desse gênio
barroco napolitano.
O fato de existirem tantas obras
erroneamente atribuídas a ele só
ressalta o renome de sua música
na época. Morto, provavelmente
de tuberculose, aos 26 anos de
idade, Pergolesi não deixou um
número suficiente de composições para satisfazer o desejo do
mundo, que fez o que pôde para
compensar essa falta.
Ninguém fez mais do que Stravinski (1882-1970), cujo balé "Pulcinella" é todo ele uma recriação
da música de Pergolesi, 200 anos
depois (para ser mais exato: dos
21 movimentos, só 10 são do italiano; mas Stravinski não tinha
como saber disso). "Descobrir essa música significou uma primeira olhada para o passado... mas
também uma visão no espelho."
Talvez não haja mais, entre nós,
outro compositor capaz de espelhar Pergolesi. Mas seu nome já
faz parte da música do século 20,
assim como do 18; e sabe-se lá como não vai ser recriado na do século 21.
Escrito num monastério, durante seu último ano de vida, o
"Stabat Mater", para soprano,
contralto e orquestra, é sua peça
mais conhecida, juntamente com
a pequena ópera-bufa "La Serva
Padrona" (recentemente filmada
por Carla Camurati).
A partitura mais publicada de
seu tempo foi tida desde logo como exemplo supremo de uma
"nova" música eclesiástica: o estilo "galante" aplicado à liturgia.
Menos preocupada com a polifonia, mais próxima do modelo instrumental do concerto, que concede ênfase às melodias, essa arte
mereceu a homenagem também
suprema de Johann Sebastian
Bach, que a adaptou para seus
próprios fins (com o nome "Tilge,
Höchster, Meine Sunden").
"Pergolesi nasceu; e a verdade
se fez conhecer", escreveu o compositor Grétry. "O dueto inicial é
o mais perfeito e comovente jamais dado à pena de um compositor", sentenciou ninguém menos
do que Jean-Jacques Rousseau
-no contexto de uma querela célebre, entre os defensores da vanguarda italiana, de um lado, e da
tradição operística francesa, do
outro.
Que tais elogios digam respeito
a tão poucas obras, criadas em
meros seis anos de carreira, dá a
medida dessa carreira e da música, que agora recebe uma homenagem de outra ordem, com essa
gravação.
Pode-se cantar de outra forma
-é o caso de Margaret Marshall e
Lucia Terrani, na gravação "romântica" de Claudio Abbado,
com a LSO. Pode-se cantar parecido: a interpretação "autêntica"
de Emma Kirkby e James Bowman, com The Academy of Ancient Music.
Mas dificilmente alguém hoje
canta o "Stabat Mater" melhor do
que a soprano Barbara Bonney e o
contratenor Andreas Scholl, intérpretes predestinados dessa
música de destino exemplar, sobre o mais exemplar dos destinos
(o texto latino narra a crucificação
de Jesus, do ponto de vista de Maria).
Há um mistério insondável no
encontro de uma voz com uma
palavra, com uma melodia. O tom
do canto se multiplica em sentidos, nas pequenas viradas e mínimas curvas da música. "Supplicio", "lacrimosa", "flagellis", "gementes", "inflammatus": cada palavra extrai música da música; e
cada compasso, cantado, faz coincidir essa música com suas palavras, segundo um princípio que
não tem nome, mas que talvez
possa ser chamado de Pergolesi.
Isso vale tanto para o "Stabat
Mater" quanto para os dois "Salve
Regina": um, bem conhecido, em
fá menor, também escrito nos últimos dias do compositor (cantado por Scholl); o outro, em lá menor, de caráter menos sombrio,
mas não menos tocante (com a
solista Bonney).
Les Talents Lyriques, orquestra
criada no início da década de 90
por Christophe Rousset, tem como ninguém o sentido do barroco napolitano, que é sua especialidade. Oxalá houvesse mais regentes como Rousset: regendo sempre a favor da música, sem fazer
favor à música.
O início desse disco é um momento na vida de qualquer ouvinte. As cordas graves estabelecem o
padrão "peregrino" típico das
cantatas barrocas. Violinos descem do vazio, numa sucessão de
dissonâncias (segundas menores
e maiores). O contratenor entoa a
palavra "stabat" e a soprano entra
em seguida, uma segunda acima.
O efeito pode não ser completamente original, mas é incomparável. Essa descrição não diz nada. A
música diz tudo.
Entre os que a escutaram, e fizeram alguma coisa, estão alguns
contemporâneos de Pergolesi, como Francesco Durante e Leonardo Leo, nomes meio encantados,
que hoje pertencem mais aos dicionários do que à memória viva
das platéias.
Mas quem recompõe o drama
musical de Pergolesi, em bases
próprias, é Mozart -não por acaso no "Réquiem", escrito igualmente em seus últimos dias de vida. Isso que passa de um a outro,
esse espírito que não tem definição, mas tem palavras, canto e
melodias, é uma grandeza particular da música, "a verdade que se
faz conhecer" -e é toda a verdade que nos cabe, na música e fora
dela.
Avaliação:
Disco: Stabat Mater - Giovanni Batista
Pergolesi
Orquestra: Les Talents Lyriques
Gravadora: Decca (importado)
Onde encomendar: www.amazon.com
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