|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
De onde vem o despertar de uma besteira
Surpreendi o primeiro vagido
de uma besteira. Senti-me como
um astrônomo que, por puro acaso, apontando seu telescópio para
o céu, veria um corpo celeste surgir do nada.
Foi assim. Em janeiro, os "Archives of General Psychiatry" publicaram um artigo inexpressivo
-uma daquelas pesquisas que
servem para levantar fundos e
preencher as exigências de publicação do mundo acadêmico americano. Durante quatro anos, os
autores testaram o nível de cortisol na saliva de 38 rapazes patologicamente agressivos. O cortisol
é um hormônio produzido pelo
organismo em situações de estresse e medo.
Constatou-se que, entre esses jovens com problemas de conduta,
os mais violentos eram os com
menos cortisol no organismo. Explicação: os que menos se angustiam são os mais violentos, porque não são inibidos pelo medo
das consequências de seus atos.
Os autores comentam: "O mecanismo que liga uma agressividade persistente a baixas concentrações de cortisol não é conhecido. Modelos animais mostraram
que estresse no pré-natal e no desenvolvimento precoce podem
causar alterações duradouras ou
mesmo permanentes do eixo hipotalâmico-pituitário-adrenalínico (que é responsável pelo cortisol -nota minha). Seria interessante em estudos futuros examinar se um certo estilo de vida próprio a famílias anti-sociais (tabagismo materno ou exposição a
outros teratogênicos durante a
gravidez, incompetência dos pais,
ambiente caótico e imprevisível,
abuso, ameaças, privações) pode
ser associado a desregramento
desse eixo".
Em outras palavras, a pesquisa
constata a correlação entre uma
situação fisiológica (baixo nível
de cortisol) e o comportamento
patológico agressivo. Mas a causa
da patologia reside nas dificuldades da vida desses jovens. A partir
dessa conclusão seria possível sair
propondo um chiclete de cortisol,
com a idéia de que ele possa acalmar nossos adolescentes. Mas os
autores nunca diriam que esse remédio cura a agressividade dos
adolescentes. Seria apenas um
paliativo.
Ora, acontece que os problemas
de comportamento dos jovens são
um best seller cultural e terapêutico. Pais desesperados pagariam
qualquer preço para a cura da
agressividade adolescente. Qualquer novidade nesse campo, por
inexpressiva que seja, é notícia.
Eric Fidler, um jornalista da
Associated Press, achou que a
pesquisa poderia dar samba e escreveu um breve artigo no qual a
pesquisa dos "Archives" passa
por uma séria cirurgia plástica.
O artigo começa assim: "Na saliva de jovens muito agressivos foram encontrados níveis menores
do que o esperado de um hormônio do estresse. O que sugere que
seu comportamento pode ser biologicamente fundado e difícil de
ser tratado com terapia. É o que
foi anunciado ontem por pesquisadores". O que aconteceu? O jornalista entrevistou um dos autores, Keith McBurnett, e conseguiu
que ele sugerisse que um tratamento apropriado poderia incluir remédios similares àqueles
administrados às crianças hiperativas.
Fidler, em suma, preferiu esquecer a pesquisa e levou McBurnett a afirmar o que ele (Fidler)
estava a fim de ouvir -ou seja,
que vamos poder tratar adolescente violento com pílulas.
Será que para conseguir uma
notícia que prestasse Fidler empurrou McBurnett a falar besteiras em desacordo com sua própria pesquisa? Será que McBurnett se deixou empolgar por seus
15 minutos de celebridade? Provavelmente as duas coisas ao
mesmo tempo.
Moral da história: uma pesquisa inexpressiva sobre uma simples correlação fisiológica (sem
implicações causais) encontrou a
ambição de um jornalista, que
encontrou a vaidade de um psicólogo. Graças a isso, ela se transformou numa afirmação sobre a
causalidade de um dos comportamentos mais problemáticos em
nossa cultura.
Previsão: a seguir, equipes médico-psicológicas improvisarão
programas experimentais de tratamento bioquímico para adolescentes agressivos. Logo um laboratório farmacêutico produzirá
um suplemento de cortisol que
dará ótimos resultados nos testes:
vamos dizer, 50% de curas. Tempos depois, alguém verificará que
de fato qualquer placebo inerte
daria o mesmo resultado.
No entanto, o laboratório ganhará à beça. As equipes hospitalares serão louvadas por sua cientificidade e, naturalmente, durante vários anos, uma série de
rapazes violentos ficarão sem
ninguém que preste atenção à
mensagem desesperada contida
em seus atos.
P.S.: Na última segunda-feira,
dia 17, outro jornalista da Associated Press soltou um artigo sobre uma doença que torna inválidos 10 milhões de americanos. É
a "desordem da angústia social",
melhor conhecida como timidez.
É um artigo estranho, com algumas entrevistas com pessoas tímidas e nenhuma referência a
pesquisas recentes. Pergunto-me:
qual é a necessidade desse artigo?
Por que agora? Onde está a notícia? Aí, ligo a TV: repetidamente
aparecem os anúncios da campanha publicitária do Paxil, remédio proposto para curar a dita
"desordem da angústia social".
Que coincidência, não é?
E-mail: ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Música Erudita - Crítica: CD traz gravação "inigualável" de Pergolesi Próximo Texto: Animação: "Os Simpsons" é 10 Índice
|