UOL


São Paulo, segunda-feira, 20 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"ARAÃ!"

Escritor mineiro estréia na prosa com saudade

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Não, "araã" não é o som de pigarro, mas uma interjeição de origem tupi que denota espanto e saudade. Os dois termos definem bem o livro, pois enquanto o leitor pode espantar-se com a prosa de Evandro Affonso Ferreira, um dos temas desse seu romance de estréia é a saudade.
O vendedor de enciclopédia Seleno Selser, 70, sente saudades da mulher, morta há alguns anos. Mas a sensação de nostalgia vai além, estendendo-se para o mundo que ele representa e que aos poucos se extingue até mesmo fisicamente, com a morte de outros personagens.
A enciclopédia, por exemplo, pode parecer um anacronismo numa realidade regida pela internet, onde um único CD-ROM pode conter o conhecimento de dezenas de volumes.
Seleno rumina diante de uma vitrine de informática: "Nunca falei num celular nunca enviei/recebi um único e-mail; hã sou pré-histórico..." Mas, confiante em que há pessoas que ainda preferem o contato físico com o livro, segue oferecendo a enciclopédia Omnis, com pagamento parcelado em até 12 vezes, entrega em 15 dias e atlas histórico de brinde.
Ao mesmo tempo, organiza suas dezenas de livros, de Proust, Borges, Giovanni Verga, Virginia Woolf, Hilda Hilst; proseia com o farmacêutico Títio; flerta com a vizinha Hepodâmia; trata os dentes com o genro Androgeu.
A morte da filha Himália, de infarto, dá início a outros eventos trágicos, que Seleno encara com estoicismo: "Viver é catalogar perdas", diz. Se o fiapo de enredo pode parecer pífio, a retórica delirante do romance subverte os sinais cotidianos.
Embora o ponto de vista seja trocado durante a história, todos os personagens se exprimem da mesma forma: numa dicção irrefreável, repleta de expletivos, onomatopéias, aliterações, citações clássicas, termos preciosos ou palavras de origem popular.
Um exemplo: "Apre! Ladeira demais nesta cidade plutônica vulcânica quejando exe! qualquer hora morro aplastado pelas ruas íngremes, pronto, mais dois metros de tanto chego ufa! não nasci para imitar os heróis de Plutarco".
É desse nível de perturbação nas normas do linguajar trivial que nascem o humor e o alcance poético de "Araã!". O espanto que sentimos amplia assim a sedução dessa fábula de teor nostálgico e escopo atual.


Araã!
   

Autor: Evandro Affonso Ferreira
Editora: Hedra
Quanto: R$ 23 (145 págs.)



Texto Anterior: Público é ávido pela história do Brasil, diz autora
Próximo Texto: Moda - Temporada: "Novíssimos" estrelam Casa de Criadores
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.