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"ARAÃ!"
Escritor mineiro estréia na prosa com saudade
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Não, "araã" não é o som de
pigarro, mas uma interjeição de origem tupi que denota espanto e saudade. Os dois termos
definem bem o livro, pois enquanto o leitor pode espantar-se
com a prosa de Evandro Affonso
Ferreira, um dos temas desse seu
romance de estréia é a saudade.
O vendedor de enciclopédia Seleno Selser, 70, sente saudades da
mulher, morta há alguns anos.
Mas a sensação de nostalgia vai
além, estendendo-se para o mundo que ele representa e que aos
poucos se extingue até mesmo fisicamente, com a morte de outros
personagens.
A enciclopédia, por exemplo,
pode parecer um anacronismo
numa realidade regida pela internet, onde um único CD-ROM pode conter o conhecimento de dezenas de volumes.
Seleno rumina diante de uma
vitrine de informática: "Nunca falei num celular nunca enviei/recebi um único e-mail; hã sou pré-histórico..." Mas, confiante em
que há pessoas que ainda preferem o contato físico com o livro,
segue oferecendo a enciclopédia
Omnis, com pagamento parcelado em até 12 vezes, entrega em 15
dias e atlas histórico de brinde.
Ao mesmo tempo, organiza
suas dezenas de livros, de Proust,
Borges, Giovanni Verga, Virginia
Woolf, Hilda Hilst; proseia com o
farmacêutico Títio; flerta com a
vizinha Hepodâmia; trata os dentes com o genro Androgeu.
A morte da filha Himália, de infarto, dá início a outros eventos
trágicos, que Seleno encara com
estoicismo: "Viver é catalogar
perdas", diz. Se o fiapo de enredo
pode parecer pífio, a retórica delirante do romance subverte os sinais cotidianos.
Embora o ponto de vista seja
trocado durante a história, todos
os personagens se exprimem da
mesma forma: numa dicção irrefreável, repleta de expletivos, onomatopéias, aliterações, citações
clássicas, termos preciosos ou palavras de origem popular.
Um exemplo: "Apre! Ladeira
demais nesta cidade plutônica
vulcânica quejando exe! qualquer
hora morro aplastado pelas ruas
íngremes, pronto, mais dois metros de tanto chego ufa! não nasci
para imitar os heróis de Plutarco".
É desse nível de perturbação nas
normas do linguajar trivial que
nascem o humor e o alcance poético de "Araã!". O espanto que
sentimos amplia assim a sedução
dessa fábula de teor nostálgico e
escopo atual.
Araã!
Autor: Evandro Affonso Ferreira
Editora: Hedra
Quanto: R$ 23 (145 págs.)
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