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São Paulo, quinta-feira, 20 de fevereiro de 2003

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GASTRONOMIA

Memórias de uma eterna cozinheira

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

De vez em quando me falta o ânimo para escrever sobre comida -parece que dos anos 80 para cá já se falou tudo que havia para falar, até o século 3000. E daí escuto a voz da minha guru Elizabeth David, a inglesa-escritora-cozinheira que mudou o rumo da comida européia com seu talento e bom senso: "Não desista, alguma coisa nova pode aparecer!".
E o que de novo apareceu, para eu comentar hoje, foi mais um livro de David (1913-1992), ainda não traduzido, uma coletânea feita por Jill Norman, sua amiga. O nome é "Is There a Nutmeg in the House?". Será que tem uma noz-moscada em casa? E trata do quê? Em 1985 ela já comenta e examina as modas e modinhas da sociedade de consumo e a preocupação com as personalidades glamourizadas da cozinha -os chefs profissionais e sua comida, e a emergência dos restaurantes como substitutos do teatro, do concerto, do circo, se quiserem.
Trata de comida, é claro, mas não com a seriedade acadêmica dos últimos livros. São artigos de jornal e de revista que nos trazem memórias, histórias, numa das melhores prosas da Inglaterra.
Relembra o casarão de Sussex em que cresceu com três irmãs e de onde não tem saudades. A cozinha era ocupadíssima, empregados e gente que aparecia sem ser esperada, soltando uma comida abaixo da crítica. Muito carneiro, carneiro mesmo, não cordeiro, purê de batatas passado no espremedor todo empelotado, muito nabo, espinafre, beterraba, arroz-doce e tapioca. Vem desses tempos a idéia fixa de que a tapioca fora criada como castigo inventado para crianças levadas, mas, que injustamente, leva todos no roldão de sua ruindade.
O que a deixa intrigada era a mudança que ocorria entre a comida das crianças, completamente separada da dos adultos; a comida dos próprios adultos; e a hora do chá, quando era permitido aos filhos se juntarem aos pais.
A mesa comprida, a mãe na cabeceira, comandando a chaleira na espiriteira com água fervente, e o bule de prata na frente. Uma leiteira, mas só para as visitas, porque a mãe jamais permitiria leite ou açúcar no seu chá chinês. Só limão. Para comer, nada de espetacular, mas tudo muito gostoso. Torradas finas com manteiga, bolinhos, geléia de maçã ou marmelo feita em casa, sanduíches de pepino e um bolo. Para visitas especiais, o bolo de laranja glaçado.
O que David não entende é como as mesmas mãos que assinavam diariamente aqueles legumes supercozidos assinavam também o chá delicioso. Com certeza uma cozinheira exercendo às mil maravilhas os dois pólos de sua personalidade. Nunca mais se esqueceu dos bolos que iam do maravilhoso de laranja ao inesquecível de chocolate, passando pelo de cerejas.
A vida da "nursery" não era somente tentar comer a comida ruim que chegava lá em cima: tinha lá seus pontos altos. Proeza da babá, que, muito escondida, cozinhava na lareira do quarto coisas proibidas.
Um deles, era um brigadeiro bem puxa, que comiam da panela em colheradas. Em certas épocas do ano saíam para um bosque perto de casa à cata de cogumelos. E daí, com eles fresquinhos e orvalhados, a babá misturava-os a um creme de leite grosso feito em casa e salteava-os em frigideira, ótimo para comer com torradas.
Em junho enchiam cestas de amoras, framboesas, e quaisquer outras "berries", que a moça punha na panela com um pouquinho de açúcar e deixava no fogo só até começar a soltar água e comiam o que chamavam de salada quente, o que lhe parecia a essência do verão captada no vermelho.
Vai para a França, meninota, e aí sim, ela aprende a comer, ou melhor, ela come bem (ver "Comida Regional Francesa", Cia. das Letras). Com 21 anos, E.D. está morando sozinha em Londres e descobre a Selfridges. Abre uma conta e era só pegar o telefone e encomendar frango assado, salmão defumado, manteiga, ovos, creme de leite e café. Até que um dia, a tal conta que abriu chegou e foi preciso fechá-la rapidamente.
Com um bom presente em dinheiro, pela maioridade, compra, "Of all things", gemem os conhecidos, uma enorme geladeira. Delineava-se por meio da compra a futura cozinheira. Não se esquece da postura diante da comida da família francesa onde morou e começa a imitá-la em pequenas cozinhas mundo afora. No Cairo, durante a guerra, na Grécia, sempre em fogareiros de uma boca, mas já sabendo apreciar os ingredientes de cada lugar.
Vem daí o capítulo sobre a "minha cozinha ideal" que só foi ter depois de velha, colhendo os frutos dos apertos, leituras, curiosidades e pesquisas.
É um livro bom, muitas receitas (a de como fazer um caldo e pão inglês, clássicas), resenhas antigas que ainda valem e sua escrita fluente, inteligente e objetiva.


IS THERE A NUTMEG IN THE HOUSE?.
Autoras: Elizabeth David e Jill Norman. Editora: Viking Press. Preço: US$ 21 (318 págs.). Onde encontrar: www.amazon.com.

ninahort@uol.com.br



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