São Paulo, sexta-feira, 20 de fevereiro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

O apóstolo por dentro e por fora

Gostava de exaltar a Verdade, a Fortaleza d'Alma e a abominação de toda a iniqüidade -mas tinha fraquezas. Por trás do ascetismo, apesar dos cilícios e dos sacrifícios, não conseguia domar a carne má e gozadora. Chamava-se Caldas.
Para minha madrasta, para meu pai, para muita gente passava mesmo por um iluminado em missão redentora. Viera ao mundo preparar a Revelação do Próximo Milênio, no qual, aliás, já entramos. E tinha um exemplo a citar, uma frase do evangelho, do alcorão ou do Rig-Veda para lembrar. Repugnavam-lhe as vaidades do mundo, o dinheiro, o poder. À hora do jantar fazia considerações que lhe abriam o apetite na exata conta em que fazia o pai perder o dele. Um nunca acabar de ameaças, unificadas numa mensagem: os dias estavam contados, os Tempos haviam chegado!
O pai bebia devotadamente a sapiência de Marcelino, mesmo sem saber o que representavam os Tempos que viriam segundo as profecias. Chegara aos 60 anos ignorando essas verdades e elas ali estavam, em cima dele. Não era homem de pretensões. Queria que os Tempos respeitassem sua saúde e sua aposentadoria. Solicitava a intercessão do amigo. Caldas prometia vagamente:
- É possível, é possível. Fique certo, haverá justiça e eu estarei lá.
O pai confiava não tanto na justiça, mas em Caldas, que estaria lá.
E o iluminado amaldiçoava as instituições, as religiões, as conquistas científicas, técnicas e estéticas:
- O que é eletricidade? Uma brincadeira de mafuá. A Mona Lisa? Uma prostituta de mau hálito. A bomba atômica? Uma bombinha de são João diante da Verdadeira Luz!
A Humanidade, manada de porcos a refocilar na lama. Os homens, macacos cheios de cio, saciando instintos bestiais. As mulheres, serpentes prenhes de malícia e venenoso licor, cabras na lascívia, éguas no consumir o fogo dos sentidos. Odiava o dinheiro, o prazer, o sono exagerado, a intemperança no comer e no beber, odiava a glória:
- Vivemos em grades de carne. Imagine um prisioneiro condenado a dois anos que transformem sua cela em palácio. Libertado das grades, o que lhe restará? Se, em vez disso, aproveitar os dias de sua prisão para aperfeiçoar-se na sabedoria, poderá se refazer, buscando a liberdade. Em vez de estarmos preparados para os Tempos que se aproximam, procurando cultivar as forças do Espírito, dissipamos nossa existência com o nosso corpo, saciando-o de gozos, destinando-o ao conforto da prisão provisória. Chega porém o dia da libertação, e o que acontece? O corpo, outrora bem tratado, bem servido e bem gozado, vai apodrecer na mistura de verme e lama. O espírito, que serviu àquele corpo como único ideal, supremo cuidado, imediata finalidade, não estará preparado para a vida que se inicia. Sofrerá então a pior das dores, a mais funda das decepções! Viverá em trevas, em agonias, em chamas de eterno padecimento!
O pai ouvia aflito, bebendo a doutrina. O Caldas sabia coisas!
- Não podemos viver um só dia na ignorância do nosso destino eterno. Ou a carne ou o espírito. Ou mantemos o espírito alerta, senhor da carne, ou teremos a carne como senhora do espírito. E quando chegarem os Tempos receberemos o castigo ou a recompensa, sentaremos à direita ou à esquerda do Cordeiro...
O pai interrompeu:
- Os da esquerda também têm o direito de sentar?
Caldas gaguejava, não previra a pergunta e honestamente não sabia. Mas era coisa secundária, sentados ou em pé, os da esquerda eram malditos e bastava.
- Ganharemos a treva e a desolação para sempre ou a luminosa glória por todos os séculos. Luz diante do Eterno Trono ou aflição na geena do fogo, a contemplarmos enojados a nossa carne, antiga rainha, a apodrecer nos esgotos, banqueteada por vermes asquerosos!
A madrasta avisava que o jantar estava na mesa. O pai se enfastiava diante da comida, provava um pouco de purê, uns bocados de pão, mastigando-os sem prazer.
Caldas entrava no peixe assado com molho de camarão, nas almôndegas de fígado e bacon ou na galinha a molho pardo. Só não comia carne de boi sangrando. Dizia ser carne sacrificada, conservando em suas moléculas o desespero da hora em que fora sacrificada.
O pai gostava dos bifes malpassados. Caldas advertiu-o do perigo, aquela carne guardava a violência da morte, era um alimento deletério. Mesmo tendo distante noção do que seria "deletério", o pai passou a comer bifes passados que nem carvão, depois nem isso, também queria estar preparado para os Tempos.
Caldas nem sempre era trágico. Vinha às vezes alegre, sem furores ascéticos. Ao entrar em casa dava um "salute" para todos, distribuía fartamente "aves", e era um tal de ave para a madrasta, ave para o pai, ave para todos, menos para mim. Diminuía o entusiasmo e saudava-me com um severo "pax". Não queria guerras comigo.
À hora da mesa, quando a cozinheira trazia novo prato, ele se alvoroçava, exclamava "benedicite!" e fazia gestos cabalísticos em cima do empadão ou do risoto. E depois comandava: "Manducamus in pace!". E comia, fartamente, em paz.

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