São Paulo, Sábado, 20 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Elvis, o mito, ganha mais 658 páginas

RICHARD WILLIAMS
do "Independent"

No dia 30 de outubro de 1976, com menos de um ano de vida pela frente, Elvis Presley, aos 41 anos, entrou num estúdio de gravação pela última vez. A verdade, porém, não foi bem assim.
Como o cantor já não sentia interesse suficiente em seu próprio trabalho para fazer a viagem (curta) até os estúdios de Memphis ou Nashville de onde saíram seus grandes sucessos, a gravadora, em desespero, enviou os equipamentos necessários até sua mansão, Graceland, onde foram montados numa sala conhecida como Jungle Room (sala da selva).
A carreira de Elvis já estava reduzida a pouco mais do que uma sequência de turnês comerciais organizadas para subsidiar uma microeconomia devastada por hábitos caros: não apenas a compulsão de gastar do próprio Elvis, mas também os desmandos de seu empresário, viciado em jogos de azar.
A música com a qual Presley conquistara fama e fortuna e ajudara a criar uma nova cultura popular agora mal conseguia despertá-lo do torpor provocado por suas extravagâncias farmacológicas.
A sessão foi um desastre. No segundo e último volume de sua biografia definitiva de Elvis Presley, Peter Guralnick descreve como Elvis adiou sua chegada ao "estúdio" até os músicos chegarem ao ponto de se rebelar.
Depois de gravar uma canção, perdeu interesse pelo trabalho ao ser avisado da chegada de um carregamento de motos.
Um pouco mais tarde, retornou à Jungle Room com uma metralhadora na mão. Dizendo a seus assistentes que não estava no estado de espírito certo para cantar, mandou todos para casa.
Ou seja, foi um episódio tipicamente bizarro e lamentável da última fase da vida de um dos maiores ícones do rock.
Mas o que sobreviveu daquele dia, deixando de lado mais uma anedota, é a canção gravada, uma versão de quatro minutos e meio de "He'll Have to Go", um sucesso antigo de Jim Reeves.
Diante de um arranjo sóbrio, com guitarra eloquente e coro discreto, Elvis canta a balada tristonha com sobriedade emocional, tom firme, fraseado meticuloso, um comando belíssimo dos vibratos e o ar geral de um homem que vive a melhor fase de sua vida.
Seria impossível estar mais distante da caricatura do Elvis inchado e gordo em Las Vegas -e, como suas versões de "Promised Land", de Chuck Berry, "Tomorrow is a Long Time", de Dylan, e um velho lado B de Bing Crosby chamado "Beyond the Reef", a gravação deita por terra a idéia amplamente difundida de que a produção de Elvis depois de sua saída do Exército foi totalmente destituída de valor.
O autor enxerga a verdade inerente à aparente contradição entre o comportamento grosseiro de Elvis e a beleza de sua música. Guralnick não santifica seu objeto, mas tampouco o massacra; conta sua história da maneira mais justa e escrupulosa possível.
Sua disposição de apresentar e pesar as evidências, recorrendo às extensas entrevistas que ele próprio conduziu e a uma cuidadosa seleção de materiais vindos de fontes publicadas anteriormente, possibilita ao leitor tirar suas próprias conclusões.

Ann-Margret|
Assim, o charme e a generosidade de Elvis são contrapostos ao nepotismo que praticava e a seu hábito de manipular as muitas mulheres com quem se relacionou. O livro traz novos depoimentos de diversas namoradas do cantor e integrantes da máfia de Memphis.
Ao lado da grotesca autogratificação (possivelmente induzida pelo sargento que o iniciou no consumo de anfetaminas, durante manobras do Exército na Alemanha) e da auto-indulgência desvairada (fica claro que a decadência da indústria automobilística de Detroit foi causada não pela importação irrestrita de carros japoneses, mas pela morte de Elvis, que pôs fim à aquisição atacadista de Pontiacs, Lincolns e Cadillacs), figuram as oportunidades perdidas em sua vida, como um romance com Ann-Margret, com quem estrelou "Viva Las Vegas" e cuja inteligência poderia haver sido sua salvação.
Em lugar dela, Elvis se casou com Priscilla Beaulieu, uma adolescente de personalidade ainda informe e fisicamente parecida com ele.
Somos apresentados ao empresário de Elvis, o auto-inventado coronel Parker, cuja cobiça implacável e recusa míope em preocupar-se com a qualidade do produto levou diretamente à erosão da ética de trabalho de Elvis, antes rigorosa.
O artista rigorosamente autocrítico que, em 1956, fez questão de gravar "Hound Dog" 31 vezes até optar pela versão melhor, em 1972 havia decaído a ponto de seu baterista, Jerry Carrigan, afirmar que ele se contentava com qualquer coisa. Quando Parker finalmente percebeu no que dera sua estratégia, já era tarde demais.
Mas a análise que Guralnick faz do pragmatismo instintivo do coronel, muitas vezes brilhante, também nos permite vislumbrar as razões que podem ter levado Elvis a concordar com uma divisão meio a meio com seu empresário e, depois, com a decisão aparentemente maluca de vender à gravadora os direitos de seu catálogo inteiro de sucessos passados pela soma única de US$ 5,4 milhões, em 1973. Com isso, Parker, graças a diversos bônus e honorários de consultoria, conseguiu abocanhar a parte do leão do valor bruto.
E vemos Presley, com sua tendência a absorver-se em si mesmo, incentivada pela mãe e reforçada por seu público, tropeçar nas baixezas da exploração espiritual, extasiado com Khalil Gibran Khalil e Madame Blavatsky, dopado com Tuinal, Dexamyl, Placidyl e Dilaudid, experimentando LSD, em parte à procura de alguém a quem reverenciar e em parte convencido da própria divindade.

Rodapés
Há cinco anos, quando fiz a resenha do primeiro volume, "Last Train to Memphis", nestas páginas, expressei (entre muitos comentários elogiosos) algumas reservas em relação à quantidade de detalhes circunstanciais que Guralnick oferecia, abrangendo desde o nascimento de Elvis, em 1935, até seu alistamento no Exército americano, em 1958, no auge de sua popularidade.
Com 658 páginas, "Careless Love" é quase 50% mais longo do que o primeiro volume e possui quase duas vezes mais notas de rodapé.
Perto do final, ao analisar o videoteipe de um show de Elvis em 1977, Guralnick resume o destino lamentável do artista num parágrafo de profunda ressonância: "Ele dá a impressão de um homem que grita por socorro, mas sabe que ninguém virá em sua ajuda. E, mesmo hoje, mais de 20 anos depois, ainda é quase insuportável ouvir ou assistir ao apagar não apenas da beleza, mas da própria memória da beleza, e ver seu lugar ser tomado pelo horror nu e cru". Homérico nos contrastes que traça entre a beleza e a loucura, esta é uma obra monumental.


Tradução de Clara Allain

Livro: Careless Love: The Unmaking of Elvis Presley
Autor: Peter Guralnick
Lançamento: Little Brown
Quanto: US$ 27,95 (658 págs.)



Texto Anterior: Obras do autor são relançadas
Próximo Texto: Alberto Dines: Fantasias no purgatório
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.