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Fantasias no purgatório
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
O Carnaval impõe-se. Mesmo
que o assunto seja a paisagem e
a cartografia do além-túmulo
descritas por Dante Alighieri
na "Divina Comédia". O intelectual florentino (1265-1321)
merece um samba-enredo se
ainda não teve: para esquecer a
dor pela perda da Beatriz escreveu tocantes versos, depois
enveredou pelos caminhos da
política, foi exilado e, finalmente, produziu um dos pilares da literatura mundial.
Encontramos de tudo no extraordinário relato sobre a visita de sete dias ao universo tripartite que até hoje marca nossa imaginação -inferno, purgatório e paraíso. Lá encontramos seus ídolos, como Virgílio
e Platão, sua amada Beatriz e,
naturalmente, os desafetos nas
disputas políticas em torno do
papado. Também seus valores
morais, suas reflexões filosóficas e percepções psicológicas.
Sobretudo, o terror do sobrenatural que transformou o nome
do poeta em adjetivo -dantesco.
Na panorâmica que Alighieri
oferece dos vários compartimentos do purgatório, está
uma pérola de sabedoria: "Poi
Piovve Dentro a L'Alta Fantasia" (Pois Chove Dentro da Alta Fantasia, XVII, 25). Nos píncaros da imaginação, na esfera
superior dos devaneios em que
o ser humano equipara-se aos
deuses, há brechas irremediáveis. Nos impecáveis arranjos
para materializar os sonhos, lá
está a inconfortável falha. A
chuva que penetra é a advertência para as inevitáveis imperfeições que ronda os projetos que se distanciam da realidade.
A constatação sobre a fragilidade das fantasias ocorre justamente quando Dante descreve o círculo dos coléricos, mais
vulneráveis aos delírios que
desconjuntam os mais belos
projetos. (Quem apontou e elaborou essa preciosidade foi o
cubano-italiano Italo Calvino,
no seu breviário inacabado sobre a arte de escrever, "Seis
Propostas para o Próximo Milênio", Cia. das Letras, 94, tradução de Ivo Barroso, pág. 97).
Não choveu neste Carnaval,
mas algumas fantasias mostram-se visivelmente esgarçadas. Não aquelas que desfilaram pelas passarelas da alegria
neste maravilhoso espetáculo
de criatividade em que se
transformou o tríduo hoje nada momesco. Na mesma ala em
que Dante encontrou irados e
iracundos purgando os pecados percebe-se claramente a inconsistência das retóricas inflamadas. Isso vale em qualquer quadrante, do Curdistão
bravio às Gerais.
A tragédia do povo curdo ganhou dramática dimensão nos
últimos dias com a prisão de
Abdulah Ocalam, líder da ala
esquerda dos separatistas. Esmagados por quatro países rivais (Turquia, Síria, Irã e Iraque), os 25 milhões de curdos
viram esfumar-se a esperança
de emancipação quando o clã
dos Barzani (Mustafá e Massoud) e depois os Talabani foram derrotados a ferro e fogo
pela facção mais radical, o
PKK liderado por Ocalam. Ele
representa a fúria libertária e
liberticida, conseguiu encarnar a esperança e, ao mesmo
tempo, a descrença numa solução política e democrática.
Seus captores, não menos furiosos e sanguinários, fazem
parte de uma mal disfarçada
ditadura militar que converteu
a Turquia numa mistificação
de democracia, campeã ocidental das violações dos direitos humanos, não obstante a
insistência em ingressar na
União Européia. Ficou remota
a hipótese de um Estado curdo
multinacional, um dos mais
antigos e veementes projetos de
resgate étnico a desafiar a comunidade das nações.
No momento, importa evitar
a execução de Ocalam já brandida pelo governo de Ancara.
Mas é indispensável lembrar a
inoperância das ilusões de confronto e do messianismo guerrilheiro num cenário cada vez
mais interdependente e inclinado às negociações. O sucesso
de Nelson Mandela ao vencer
pacificamente o apartheid na
África do Sul e as boas perspectivas da dupla Ramos Horta-Ximenes Belo em dobrar os indonésios para uma autonomia
de Timor aí estão para lembrar
como a "alta fantasia", quimeras fetichistas, está sujeita às
intempéries.
Chove muito, principalmente
na seara de líderes que se pretendem iluminados, mas não
possuem luz própria para enxergar adiante do nariz. Itamar Franco produziu um milagre ao longo dos 50 dias de poder: inventou sucessivas fórmulas para se manter nas primeiras páginas, mas só consegue perder pontos e simpatias.
Ficou isolado no picadeiro. Se
no início da temporada não tinha razão, mas reivindicou razões, agora perdeu-as todas.
Sua última façanha ao convocar o comando da PM mineira para enfrentar o "caos social" revela a estreiteza de um
repertório démodé. Assim como em 1993 num arroubo de
saudosismo tentou ressuscitar
o Fusca agora procura imitar o
Magalhães Pinto de 1964. Protagoniza charges com tanto
gosto que breve será difícil dizer se é o caricaturista ou o caricaturado.
A fantasia da infalibilidade
também encharcou o guru da
economia, Paul Krugman. Não
estava no purgatório quando
Dante o visitou sete séculos antes. Mas, se insistir na presunção e na paranóia, Krugman
candidata-se a um lugar cativo
no mesmo círculo dos enfezados. Embalado pelo séquito de
basbaques e pelo barulho que
produz na mídia, o profeta da
débâcle dos tigres asiáticos fez
insinuações levianas sobre a
probidade do presidente indicado do BC, Armínio Fraga. Já
pediu desculpas três vezes. E terá que fazê-lo outras tantas para escapar das penas que cabem aos afoitos e arrogantes.
Conseguiu, pelo menos, relativizar a fantasia de que a ciência econômica é tão absoluta
como as demais.
A CNBB deve ter suas motivações estratégicas para enveredar pelo caminho da pregação
política. Fantasiou uma justificativa para o crescimento exponencial das seitas evangélicas e partiu para um agressivo
marketing ideológico. À luta
contra o desemprego -que deve mobilizar todos setores da
sociedade- acrescentou uma
cruzada contra o ajuste fiscal e
o acordo com o FMI.
Há três anos desfechou idêntica campanha contra o Proer
repetindo slogans inteiramente
emocionais contra o programa
de saneamento bancário que
salvou a poupança dos correntistas. Hoje, os Krugmans da
vida são unânimes em afirmar
que a crise atual não atingiu
proporções asiáticas ou russas
justamente porque nosso sistema financeiro mostra-se razoavelmente articulado. Graças ao Proer. A "alta fantasia"
alighieriana não é exclusividade secular, também contagia a
religião. Para sacudi-la da irrealidade, a Divina Providência abre as torneiras da chuva
reparadora.
A Copa do Samba no Rio, fulgurante exibição de uma nação
de artistas, teve a fantasia como roupa, saldo e desfecho. Na
Quarta-Feira de Cinzas, pelas
profecias e projeções dos jornais e da TV, os vencedores seriam Mocidade, Viradouro,
Beija-Flor, Salgueiro ou até a
lendária Mangueira. Acontece
que os prognósticos basearam-se num item falacioso e fantasioso, não conta pontos: empolgação do público. A vitoriosa
Imperatriz Leopoldinense desfilou com os pés no chão e de
olho nos critérios dos jurados.
Fez chover forte e feio na cumeeira dos entendidos.
Céu
Aos interessados na "Divina
Comédia" de Dante Alighieri
recomendam-se duas recentíssimas versões em língua portuguesa. Uma, portuguesa mesmo, de Vasco Graça Moura
(Círculo dos Leitores, Lisboa,
outubro de 98). A outra, brasileira, em versos e metrificada,
de Ítalo Eugênio Mauro (editora 34, Rio, dezembro de 98).
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