São Paulo, Sábado, 20 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Fantasias no purgatório

ALBERTO DINES
Colunista da Folha O Carnaval impõe-se. Mesmo que o assunto seja a paisagem e a cartografia do além-túmulo descritas por Dante Alighieri na "Divina Comédia". O intelectual florentino (1265-1321) merece um samba-enredo se ainda não teve: para esquecer a dor pela perda da Beatriz escreveu tocantes versos, depois enveredou pelos caminhos da política, foi exilado e, finalmente, produziu um dos pilares da literatura mundial.
Encontramos de tudo no extraordinário relato sobre a visita de sete dias ao universo tripartite que até hoje marca nossa imaginação -inferno, purgatório e paraíso. Lá encontramos seus ídolos, como Virgílio e Platão, sua amada Beatriz e, naturalmente, os desafetos nas disputas políticas em torno do papado. Também seus valores morais, suas reflexões filosóficas e percepções psicológicas. Sobretudo, o terror do sobrenatural que transformou o nome do poeta em adjetivo -dantesco.
Na panorâmica que Alighieri oferece dos vários compartimentos do purgatório, está uma pérola de sabedoria: "Poi Piovve Dentro a L'Alta Fantasia" (Pois Chove Dentro da Alta Fantasia, XVII, 25). Nos píncaros da imaginação, na esfera superior dos devaneios em que o ser humano equipara-se aos deuses, há brechas irremediáveis. Nos impecáveis arranjos para materializar os sonhos, lá está a inconfortável falha. A chuva que penetra é a advertência para as inevitáveis imperfeições que ronda os projetos que se distanciam da realidade.
A constatação sobre a fragilidade das fantasias ocorre justamente quando Dante descreve o círculo dos coléricos, mais vulneráveis aos delírios que desconjuntam os mais belos projetos. (Quem apontou e elaborou essa preciosidade foi o cubano-italiano Italo Calvino, no seu breviário inacabado sobre a arte de escrever, "Seis Propostas para o Próximo Milênio", Cia. das Letras, 94, tradução de Ivo Barroso, pág. 97).
Não choveu neste Carnaval, mas algumas fantasias mostram-se visivelmente esgarçadas. Não aquelas que desfilaram pelas passarelas da alegria neste maravilhoso espetáculo de criatividade em que se transformou o tríduo hoje nada momesco. Na mesma ala em que Dante encontrou irados e iracundos purgando os pecados percebe-se claramente a inconsistência das retóricas inflamadas. Isso vale em qualquer quadrante, do Curdistão bravio às Gerais.
A tragédia do povo curdo ganhou dramática dimensão nos últimos dias com a prisão de Abdulah Ocalam, líder da ala esquerda dos separatistas. Esmagados por quatro países rivais (Turquia, Síria, Irã e Iraque), os 25 milhões de curdos viram esfumar-se a esperança de emancipação quando o clã dos Barzani (Mustafá e Massoud) e depois os Talabani foram derrotados a ferro e fogo pela facção mais radical, o PKK liderado por Ocalam. Ele representa a fúria libertária e liberticida, conseguiu encarnar a esperança e, ao mesmo tempo, a descrença numa solução política e democrática.
Seus captores, não menos furiosos e sanguinários, fazem parte de uma mal disfarçada ditadura militar que converteu a Turquia numa mistificação de democracia, campeã ocidental das violações dos direitos humanos, não obstante a insistência em ingressar na União Européia. Ficou remota a hipótese de um Estado curdo multinacional, um dos mais antigos e veementes projetos de resgate étnico a desafiar a comunidade das nações.
No momento, importa evitar a execução de Ocalam já brandida pelo governo de Ancara. Mas é indispensável lembrar a inoperância das ilusões de confronto e do messianismo guerrilheiro num cenário cada vez mais interdependente e inclinado às negociações. O sucesso de Nelson Mandela ao vencer pacificamente o apartheid na África do Sul e as boas perspectivas da dupla Ramos Horta-Ximenes Belo em dobrar os indonésios para uma autonomia de Timor aí estão para lembrar como a "alta fantasia", quimeras fetichistas, está sujeita às intempéries.
Chove muito, principalmente na seara de líderes que se pretendem iluminados, mas não possuem luz própria para enxergar adiante do nariz. Itamar Franco produziu um milagre ao longo dos 50 dias de poder: inventou sucessivas fórmulas para se manter nas primeiras páginas, mas só consegue perder pontos e simpatias. Ficou isolado no picadeiro. Se no início da temporada não tinha razão, mas reivindicou razões, agora perdeu-as todas.
Sua última façanha ao convocar o comando da PM mineira para enfrentar o "caos social" revela a estreiteza de um repertório démodé. Assim como em 1993 num arroubo de saudosismo tentou ressuscitar o Fusca agora procura imitar o Magalhães Pinto de 1964. Protagoniza charges com tanto gosto que breve será difícil dizer se é o caricaturista ou o caricaturado.
A fantasia da infalibilidade também encharcou o guru da economia, Paul Krugman. Não estava no purgatório quando Dante o visitou sete séculos antes. Mas, se insistir na presunção e na paranóia, Krugman candidata-se a um lugar cativo no mesmo círculo dos enfezados. Embalado pelo séquito de basbaques e pelo barulho que produz na mídia, o profeta da débâcle dos tigres asiáticos fez insinuações levianas sobre a probidade do presidente indicado do BC, Armínio Fraga. Já pediu desculpas três vezes. E terá que fazê-lo outras tantas para escapar das penas que cabem aos afoitos e arrogantes. Conseguiu, pelo menos, relativizar a fantasia de que a ciência econômica é tão absoluta como as demais.
A CNBB deve ter suas motivações estratégicas para enveredar pelo caminho da pregação política. Fantasiou uma justificativa para o crescimento exponencial das seitas evangélicas e partiu para um agressivo marketing ideológico. À luta contra o desemprego -que deve mobilizar todos setores da sociedade- acrescentou uma cruzada contra o ajuste fiscal e o acordo com o FMI.
Há três anos desfechou idêntica campanha contra o Proer repetindo slogans inteiramente emocionais contra o programa de saneamento bancário que salvou a poupança dos correntistas. Hoje, os Krugmans da vida são unânimes em afirmar que a crise atual não atingiu proporções asiáticas ou russas justamente porque nosso sistema financeiro mostra-se razoavelmente articulado. Graças ao Proer. A "alta fantasia" alighieriana não é exclusividade secular, também contagia a religião. Para sacudi-la da irrealidade, a Divina Providência abre as torneiras da chuva reparadora.
A Copa do Samba no Rio, fulgurante exibição de uma nação de artistas, teve a fantasia como roupa, saldo e desfecho. Na Quarta-Feira de Cinzas, pelas profecias e projeções dos jornais e da TV, os vencedores seriam Mocidade, Viradouro, Beija-Flor, Salgueiro ou até a lendária Mangueira. Acontece que os prognósticos basearam-se num item falacioso e fantasioso, não conta pontos: empolgação do público. A vitoriosa Imperatriz Leopoldinense desfilou com os pés no chão e de olho nos critérios dos jurados. Fez chover forte e feio na cumeeira dos entendidos.

Céu
Aos interessados na "Divina Comédia" de Dante Alighieri recomendam-se duas recentíssimas versões em língua portuguesa. Uma, portuguesa mesmo, de Vasco Graça Moura (Círculo dos Leitores, Lisboa, outubro de 98). A outra, brasileira, em versos e metrificada, de Ítalo Eugênio Mauro (editora 34, Rio, dezembro de 98).


Texto Anterior: Elvis, o mito, ganha mais 658 páginas
Próximo Texto: Fotografia: Modotti e Weston contrapõem social ao estético
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.