São Paulo, segunda-feira, 20 de março de 2000


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ARTIGO

Arte é arte, popular ou erudita

GERALDO EDSON DE ANDRADE
especial para a Folha

O que mais surpreende no capítulo da arte naïf no Brasil é o pouco espaço que os críticos lhe concedem, muitas vezes relegando-a a um nível inferior.
Preferem exaltar qualidades inusitadas na chamada arte erudita, obviamente porque já chega ao nosso circuito sob aclamação internacional. Nossos críticos pecam por transmitir ao leitor apenas uma faceta da arte brasileira, quando sabemos que ela é, na essência, pluralista. Queiram ou não, a arte naïf, como se costuma definir a criação popular, tem o seu lugar garantido.
Preconceitos à parte, ela se identifica com o público pela sua autenticidade nacional, por isso mesmo com trânsito internacional. Fala a muitos e não somente a uma meia dúzia de eruditos ditadores de linguagens que nos vêm da matriz.
Arte naïf tem seu valor, sim, e muito. É a arte da espontaneidade, da criatividade autêntica, do fazer artístico sem escola nem orientação, porquanto é instintiva e onde o artista expande seu universo particular. Claro que, como numa arte mais intelectualizada, existem os realmente marcantes e outros nem tantos. Mas é justamente por isso que precisa de acompanhamento crítico, para que não proliferem ingênuos nem tampouco aproveitadores de sua estética espontânea.
Elevada à linguagem de arte pelo francês Rousseau a partir de 1908, teve, no Brasil, o pioneirismo de Cardosinho (1861-1947), com suas fantasias beirando o surreal, copiadas de cartões-postais, que foram acolhidas por nomes como Portinari e o nipo-francês Fujita, então passando temporada entre nós. Mas foi com a premiação de Heitor dos Prazeres (1898-1966), humilde contínuo do então Ministério da Educação, na 1ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, que a pintura dita naïf brasileira teve seu momento de afirmação, com uma pintura mesclada de sambistas e pastoras, o mundo do samba, enfim, que ele, também compositor popular, inclusive como parceiro de Noel Rosa, conhecia como ninguém. Mais tarde seria seguido pelo genial Pedro Paulo Leal (1894-1968), com suas dramáticas cenas de naufrágio na baía de Guanabara, e o talentoso Chico da Silva (1910-1985), com suas cenas amazonenses enfocando peixes, flora e animais aquáticos, que, inclusive, lhe valeram uma Menção Honrosa na 33ª Bienal Internacional de Veneza. Hoje, eles estão pelo país afora, como Poteiro, Aparecida Azevedo, Ivonaldo, Waldomiro de Deus, Gerson, Rosina Becker do Valle, Vatenor... Alguém entende o que eles dizem, ou simplesmente não querem, por se tratar de arte marginalizada?
Desconcertante, pois, é ver que toda uma produção de real valor não merece uma linha sequer nos jornais, enquanto muita empulhação, como as indefectíveis instalações e conceituações, ocupam os espaços nobres de bienais e salões oficiais, numa distorção que, no fundo, pouco contribui para o conhecimento de nossa arte como um todo.


Geraldo Edson de Andrade é crítico de arte, professor de História da Arte da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e autor do livro ""A Arte Naïf no Brasil" (Empresa das Artes, 1998)

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