São Paulo, sexta, 20 de março de 1998

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TELEVISÃO
"Ratinho Livre" iguala popular a boçal

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

É impossível discordar de Nelson Hoineff, quando afirma (na Ilustrada de 14/3) que, entre tantos programas populares voltados ao bizarro, o espectador escolhe um tal e não tais outros -que se transforma então em "fenômeno", em "caso", e torna-se objeto da "dificuldade da mídia de entender um fato novo".
Com efeito, existe uma tendência acentuada da classe média -representada na mídia -a voltar as costas aos gostos e costumes da população pobre. Talvez exista mesmo algo de saudável nesse estranho choque de realidade promovido pela TV.
É como se nosso velho apartheid, sustentado a poder de muros de três metros, grades eletrônicas, sistemas magnéticos, se dismilinguisse graças a essas imagens cruas, até repulsivas, que invadem nossos lares -como diziam antigos apresentadores de TV.
Há, com efeito, todo um mundo jogado para baixo do tapete que a televisão puxa para cima e torna visível, dolorosamente palpável.
É bem menos aceitável, no entanto, a afirmação de Hoineff, segundo a qual se o público consagra tal ou tal programa de TV é porque ele possui preciosas virtudes estéticas ou uma originalidade insubstituível. Resumindo: o povo sabe o que quer.
O problema desse tipo de raciocínio é que ele é apenas intimidatório. Há Chacrinha como exemplo do artista injustiçado até que concretos e tropicalistas o descobrissem. Seria possível lembrar ainda Oswald, Lautréamont, Antonin Artaud, Zé do Caixão etc. Mas isso não quer dizer que qualquer artista rejeitado por seu tempo seja incompreendido, como nos tenta convencer o artigo "Ratinho e a contradição kantiana".
Apenas alinhavo alguns outros "fenômenos" da TV: Márcia, "Aqui Agora", "O Povo na TV", professor Lemgruber, "O Homem do Sapato Branco" (excluo Gugu e outros, que ao menos respeitam minimamente seu espectador).
Inútil dizer que são sintomas de alguma coisa. Claro que são. Mas dores de estômago também, e nem por isso tornam-se desejáveis ou dignas de estima.
Hoineff crê que a mídia não compreendeu a originalidade que justificaria o sucesso de Ratinho (embora ele também não adiante muito a esse respeito). Não serei eu a tentar compreender o fenômeno.
Conheci-o por longos 30 segundos, o tempo de sentir náuseas diante de uma obscena exposição de desgraças e deformidades físicas, em que se humilham pessoas e se abolem as fronteiras entre o público e o privado. Isso não dá para discutir ética ou esteticamente.
É até espantoso que Hoineff, um homem de TV criterioso, venha a público defender isso.
Ele acusa a mídia de não compreender e aceitar Ratinho, mas para isso baseia-se numa petição de princípio, segundo a qual o que dá ibope é bom, portanto quem não entende isso não entende nem a TV nem o povo.
A aceitar esse tipo de pensamento, legitima-se qualquer coisa, e não é estranho que Hoineff quase atribua a Ratinho o estatuto de poeta maldito, iconoclasta, um capítulo na luta da cultura popular contra os letrados opressores.
Talvez seja possível raciocinar de outra forma. A mídia tende a observar com indiferença esse tipo de aberração. Reduz a ignomínia a "folclore", a inocente "baixaria", pois não se sente concernida por essa classe de programa, nem por seu público -é o "espírito de Miami" em ação.
De resto, o que pensa a mídia não vai alterar a audiência do programa, constituída, é de se supor, de subcidadãos que não se reconhecem em nenhuma instituição da República -o que é justo, porque elas não existem para servi-los, seja a justiça, a polícia, a burocracia de Estado, a educação, a previdência -e se deixam transformar em espetáculo por pessoas que lhes acenam com a força da instituição em que se reconhecem -a TV.
Mas é grave que a classe média dê as costas ao fenômeno, armando-se de um imperdoável cinismo, como a dizer: os pobres que se entendam com sua ignorância, meu mundo é outro.
Enquanto isso, a TV oferece "o que o povo quer", isto é, uma representação da ignorância, da intolerância, da indignidade, da prepotência -em uma palavra: da subcidadania.
Nessa classe de programas traveste-se o interesse do público em interesse público. Seus esforços não se dirigem, em momento algum, à necessidade de aprimorar, engrandecer ou embelezar o mundo e os que o habitam. Existem, antes, para rebaixar o popular à categoria de ralé -já que seu êxito se dá em função do sentimento de abandono da população pobre.
Não por acaso, Ratinho -que é hoje a mais alta expressão dessa rastejante tendência -se vende como um boçal -um igual de seus espectadores.
Isso pode inocentá-lo pessoalmente, mas não à TV -em particular a Record. É de lembrar que o programa se chama "Ratinho Livre", como a assimilar, em forma de escárnio, o uso da liberdade de expressão ao espírito de escória que esse canal exibe e propaga.



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