São Paulo, quinta-feira, 20 de abril de 2000


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A VIDA

História se sustenta

IRINEU FRANCO PERPETUO
especial para a Folha

Se os méritos artísticos de "Villa-Lobos, uma Vida de Paixão" são pelo menos discutíveis, no quesito acuidade histórica o filme até que se sustenta.
Zelito Viana, é bom que se frise, não fez um documentário, mas uma obra de ficção. Suas "licenças poéticas", contudo, ferem bem menos o que se tem como verdade histórica do que as barbaridades cometidas em, digamos, "Amadeus" (filme sobre Mozart) ou "Minha Amada Imortal" (sobre Beethoven).
Algumas das falas de Villa-Lobos no filme, por exemplo, são transcrições literais de discursos do compositor. E estão presentes alguns dos mais saborosos, porém verídicos, episódios de sua vida, como o encontro com o escritor Erico Verissimo, nos EUA, ou a passagem de sua infância em que Raul, seu pai, irritado, coloca-o de castigo amarrado à mesa.
Musicalmente, o maior deslize é colocar Villa-Lobos e seus amigos tocando "O Trenzinho do Caipira" para Arthur Rubinstein. Afinal de contas, o encontro entre o compositor e o virtuose do piano ocorreu em 1918 (13 anos antes da obra ser composta).
O filme passa muito tempo falando das legendárias viagens de Villa-Lobos pelo Norte e Nordeste brasileiro, ao lado do músico boêmio Romeu Donizetti.
Em seu livro "Heitor Villa-Lobos - the Life and Works", o musicólogo finlandês Eero Tarasti afirma que "não há informação absolutamente confiável sobre as viagens que Villa-Lobos fez em 1906-1910". O próprio compositor não é uma fonte que se deva levar em conta com relação a esse período, devido a sua tendência em exagerar o alcance de suas jornadas.
Conclusão: por falta de evidências documentais a respeito dessas viagens, a especulação de Zelito Viana é tão válida quanto qualquer outra.
Mais polêmico, contudo, é o tratamento dado, no filme, à importância da primeira mulher de Villa-Lobos, a pianista Lucília Guimarães, no desenvolvimento musical do marido.
Viana faz Lucília pedir desculpas a Villa-Lobos por não ter o talento do marido. Quando ela corrige uma de suas composições, por ser impossível de tocar, Villa-Lobos aceita as emendas da mulher muito a contragosto.
A mensagem é clara: as composições de Villa-Lobos não estavam "erradas".
O compositor era apenas muito "vanguardista", e Lucília, uma "quadrada" (como outros músicos e críticos de sua época), que não tinha capacidade para entender suas "ousadias".
Tal quadro é muito interessante na construção do mito de um "gênio", mas não parece resistir ao confronto com a realidade dos fatos.
Em seu excelente e recentemente traduzido para o português estudo sobre o compositor, Lisa Peppecorn escreveu sobre Villa-Lobos: "Embora fosse fértil em idéias musicais e na criação de melodias, ele não sabia que instrumento ou tipo de música eram adequados para elas. Precisava, portanto, de um parceiro que o aconselhasse quando estava em dúvida, ou quando simplesmente ignorava como formular os temas que tinha na cabeça. Isso também é verdade no que se refere à sua falta de conhecimento das estruturas harmônicas, o que o obrigava a consultar outras pessoas".
O fato é que a formação musical da pianista Lucília havia sido mesmo mais sólida do que a de seu marido, um autodidata por excelência (e diletante ao piano, como revelam as gravações em que ele toca o instrumento). E que ela certamente estava entre as pessoas que Villa-Lobos tinha de consultar.
Voltando a Tarasti: o musicólogo afirma que, depois do casamento com Lucília, "Villa-Lobos compôs para o piano consideravelmente mais música do que para o violão ou para o violoncelo e música que era marcada por grande fluência precisamente no que tange à técnica pianística".


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