|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A VIDA
História se sustenta
IRINEU FRANCO PERPETUO
especial para a Folha
Se os méritos artísticos de "Villa-Lobos, uma Vida de Paixão"
são pelo menos discutíveis, no
quesito acuidade histórica o filme
até que se sustenta.
Zelito Viana, é bom que se frise,
não fez um documentário, mas
uma obra de ficção. Suas "licenças
poéticas", contudo, ferem bem
menos o que se tem como verdade histórica do que as barbaridades cometidas em, digamos,
"Amadeus" (filme sobre Mozart)
ou "Minha Amada Imortal" (sobre Beethoven).
Algumas das falas de Villa-Lobos no filme, por exemplo, são
transcrições literais de discursos
do compositor. E estão presentes
alguns dos mais saborosos, porém verídicos, episódios de sua
vida, como o encontro com o escritor Erico Verissimo, nos EUA,
ou a passagem de sua infância em
que Raul, seu pai, irritado, coloca-o de castigo amarrado à mesa.
Musicalmente, o maior deslize é
colocar Villa-Lobos e seus amigos
tocando "O Trenzinho do Caipira" para Arthur Rubinstein. Afinal de contas, o encontro entre o
compositor e o virtuose do piano
ocorreu em 1918 (13 anos antes da
obra ser composta).
O filme passa muito tempo falando das legendárias viagens de
Villa-Lobos pelo Norte e Nordeste brasileiro, ao lado do músico
boêmio Romeu Donizetti.
Em seu livro "Heitor Villa-Lobos - the Life and Works", o musicólogo finlandês Eero Tarasti afirma que "não há informação absolutamente confiável sobre as viagens que Villa-Lobos fez em 1906-1910". O próprio compositor não
é uma fonte que se deva levar em
conta com relação a esse período,
devido a sua tendência em exagerar o alcance de suas jornadas.
Conclusão: por falta de evidências documentais a respeito dessas viagens, a especulação de Zelito Viana é tão válida quanto qualquer outra.
Mais polêmico, contudo, é o
tratamento dado, no filme, à importância da primeira mulher de
Villa-Lobos, a pianista Lucília
Guimarães, no desenvolvimento
musical do marido.
Viana faz Lucília pedir desculpas a Villa-Lobos por não ter o talento do marido. Quando ela corrige uma de suas composições,
por ser impossível de tocar, Villa-Lobos aceita as emendas da mulher muito a contragosto.
A mensagem é clara: as composições de Villa-Lobos não estavam "erradas".
O compositor era apenas muito
"vanguardista", e Lucília, uma
"quadrada" (como outros músicos e críticos de sua época), que
não tinha capacidade para entender suas "ousadias".
Tal quadro é muito interessante
na construção do mito de um "gênio", mas não parece resistir ao
confronto com a realidade dos fatos.
Em seu excelente e recentemente traduzido para o português estudo sobre o compositor, Lisa
Peppecorn escreveu sobre Villa-Lobos: "Embora fosse fértil em
idéias musicais e na criação de
melodias, ele não sabia que instrumento ou tipo de música eram
adequados para elas. Precisava,
portanto, de um parceiro que o
aconselhasse quando estava em
dúvida, ou quando simplesmente
ignorava como formular os temas
que tinha na cabeça. Isso também
é verdade no que se refere à sua
falta de conhecimento das estruturas harmônicas, o que o obrigava a consultar outras pessoas".
O fato é que a formação musical
da pianista Lucília havia sido
mesmo mais sólida do que a de
seu marido, um autodidata por
excelência (e diletante ao piano,
como revelam as gravações em
que ele toca o instrumento). E que
ela certamente estava entre as
pessoas que Villa-Lobos tinha de
consultar.
Voltando a Tarasti: o musicólogo afirma que, depois do casamento com Lucília, "Villa-Lobos
compôs para o piano consideravelmente mais música do que para o violão ou para o violoncelo e
música que era marcada por
grande fluência precisamente no
que tange à técnica pianística".
Texto Anterior: Zelito conta Villa nos 500 anos de Brasil Próximo Texto: Filme carece de ritmo Índice
|