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FERNANDO BONASSI
Pra que servem os muros
Os muros estão voltando à
moda! Estão sendo fotografados e filmados, aparecem nos
discursos das modelos, nos detalhes dos brinquedos, nos enredos
das novelas e nos planos de governo.
Não podemos nos esquecer de
que os muros foram criados para
a segregação dos coitados. Miseráveis que não devem sair de um
lado. Desgraçados que não podem entrar do outro. Quanto aos
nobres preocupados, também ficam isolados em seus palácios de
muros por todos os lados, nessas
ilhas de conforto que a segurança
das estacas perfiladas, dos funcionários contratados e da falta de
horizontes provê aos homens de
visão desconfiados.
Consta que o primeiro muro era
praticamente invisível e cercava o
pomar do Jardim do Éden, separando as convicções das vontades.
Quando este muro caiu, porque
um homem nu de preconceitos o
enfrentou, choveram pragas do
inferno como raios do céu, pra
que ele ficasse quietinho. Assim ficamos todos, diante da evidência
interditada dos muros! Um muro
é uma ordem, um silêncio prolongado...
Muros em surdina servem aos
que gostam de sentar em cima,
mas muros também são duros,
são desejos obscuros que precisam
de vazão. Muros de lamentos que
precisam de perdão. O muro é
uma tradição! Pois se até certos
judeus heterodoxos, outrora cercados em holocaustos, constroem
um muro sem vergonha do passado! Quanto aos árabes explosivos,
restam os muros arrastados pelos
tanques apressados e as barricadas dos moleques siderados. Todos afirmam agir em nome de
Deus, por isso os parques sagrados estão cercados e os santos pedem proteção.
São muros enraizados, muros
mumificados...
Há muros que se lembrar e muros que se esquecer. Muros são
piadas sem graça, são vontade de
poder. Porque muros são erguidos
e enterrados por cima dos corpos
que tombaram nas travessias,
muros são heresias!
Os berlinenses luteranos, por
exemplo, nunca estiveram protegidos de verdade enquanto um
muro rasgava as avenidas da cidade. São muros ideológicos, racionais, absurdos. São muros de
cegos, muros de surdos. Muros
que são limites pichados, obras de
artistas drogados. Muros ornados
de arame farpado e vendidos como suvenir. Muros eletrificados,
que são um choque, que fazem
rir!
Muros são pedras no sapato dos
poetas. Como tirá-las do caminho?
Muros separando a fome da
vontade de comer. Muros com
mirantes. Muros com minaretes.
Muros a escolher. São armados
em traição os muros do coração.
Cercas são puladas com um pouco de tesão. São os muros do compromisso e os percalços da excitação.
Há inúmeros muros de ressentimento fermentando no lixo da
história, mas muros são recicláveis, basta limpar bem os tijolinhos arrancados aos pedaços.
Muros que os terremotos não
tomam conhecimento. Muros ao
sabor dos elementos. Água, areia
e cimento.
Os muros não têm semente, ainda que se multipliquem pelos terrenos.
O muro é um veneno.
Muros são planejados, são descritos, são orçados. Muros artesanais, muros pré-fabricados. Muros são clonados, repetidos, inventados. Muros sem motivo, paredões salpicados de tiros.
Janelas são revolucionárias,
palcos de polêmicas incendiárias!
Já os muros nos viram a cara; são
diques, são tiques, são vícios conservadores. Há muros que se justificam em nome da virtude. Há
muros de ferro e muros de estrume. Mais ou menos obscuros e
malcheirosos, todos são democraticamente muros escandalosos.
Muros podem surgir num instante. Muros de livros incompreensíveis nos espaços das estantes. Muros vistos do céu distante,
muros impressionantes. São gigantescas as muralhas da China,
tantas vezes invadidas!
Muros são genéricos, muros são
específicos. Muros são artefatos
bélicos, lógicos, jurídicos. Muros
nas residências, nos tribunais e
nos presídios. Um muro é uma
vingança, uma sede, uma parede.
Um muro é um arco, um marco,
um defeito.
Um muro é um conceito.
Muros são concretos: muros entre ricos e pobres, entre homens e
mulheres, entre ignorantes e doutores, entre foices e martelos, entre o dia e a noite, entre caridade
e esmola, entre escola e sabedoria,
centro e periferia, forma e conteúdo.
Muros escalados por atletas, por
estetas, por malandros! Muros entre a bondade e a piedade, coletivo e identidade, a piedade e a humilhação, razão e loucura, o pensamento e a imaginação, a ação e
o inconsciente, imperialismo e
globalização, a casca e a fruta, o
salmão e a truta, oriente e ocidente, presente e passado, imigrantes
e emergentes, idiotas e insolentes,
a roupa e a pele, o cozido e o assado, a carne e o osso, o colar e o
pescoço, a mão e a luva, o vinho e
a uva, o dentro e o fora, o feio e o
belo, a flor e o mel, Iago e Otelo,
Caim e Abel... Muros são limites,
são percalços, são fetiches.
Muros são urros. Muros são
murros, são muito burros!
Todos os muros deviam envergonhar, pois, se os muros pudessem ensinar alguma coisa, desistiriam-se.
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