São Paulo, terça-feira, 20 de abril de 2004

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FERNANDO BONASSI

Pra que servem os muros

Os muros estão voltando à moda! Estão sendo fotografados e filmados, aparecem nos discursos das modelos, nos detalhes dos brinquedos, nos enredos das novelas e nos planos de governo.
Não podemos nos esquecer de que os muros foram criados para a segregação dos coitados. Miseráveis que não devem sair de um lado. Desgraçados que não podem entrar do outro. Quanto aos nobres preocupados, também ficam isolados em seus palácios de muros por todos os lados, nessas ilhas de conforto que a segurança das estacas perfiladas, dos funcionários contratados e da falta de horizontes provê aos homens de visão desconfiados.
Consta que o primeiro muro era praticamente invisível e cercava o pomar do Jardim do Éden, separando as convicções das vontades. Quando este muro caiu, porque um homem nu de preconceitos o enfrentou, choveram pragas do inferno como raios do céu, pra que ele ficasse quietinho. Assim ficamos todos, diante da evidência interditada dos muros! Um muro é uma ordem, um silêncio prolongado...
Muros em surdina servem aos que gostam de sentar em cima, mas muros também são duros, são desejos obscuros que precisam de vazão. Muros de lamentos que precisam de perdão. O muro é uma tradição! Pois se até certos judeus heterodoxos, outrora cercados em holocaustos, constroem um muro sem vergonha do passado! Quanto aos árabes explosivos, restam os muros arrastados pelos tanques apressados e as barricadas dos moleques siderados. Todos afirmam agir em nome de Deus, por isso os parques sagrados estão cercados e os santos pedem proteção.
São muros enraizados, muros mumificados...
Há muros que se lembrar e muros que se esquecer. Muros são piadas sem graça, são vontade de poder. Porque muros são erguidos e enterrados por cima dos corpos que tombaram nas travessias, muros são heresias!
Os berlinenses luteranos, por exemplo, nunca estiveram protegidos de verdade enquanto um muro rasgava as avenidas da cidade. São muros ideológicos, racionais, absurdos. São muros de cegos, muros de surdos. Muros que são limites pichados, obras de artistas drogados. Muros ornados de arame farpado e vendidos como suvenir. Muros eletrificados, que são um choque, que fazem rir!
Muros são pedras no sapato dos poetas. Como tirá-las do caminho?
Muros separando a fome da vontade de comer. Muros com mirantes. Muros com minaretes. Muros a escolher. São armados em traição os muros do coração. Cercas são puladas com um pouco de tesão. São os muros do compromisso e os percalços da excitação.
Há inúmeros muros de ressentimento fermentando no lixo da história, mas muros são recicláveis, basta limpar bem os tijolinhos arrancados aos pedaços.
Muros que os terremotos não tomam conhecimento. Muros ao sabor dos elementos. Água, areia e cimento.
Os muros não têm semente, ainda que se multipliquem pelos terrenos.
O muro é um veneno.
Muros são planejados, são descritos, são orçados. Muros artesanais, muros pré-fabricados. Muros são clonados, repetidos, inventados. Muros sem motivo, paredões salpicados de tiros.
Janelas são revolucionárias, palcos de polêmicas incendiárias! Já os muros nos viram a cara; são diques, são tiques, são vícios conservadores. Há muros que se justificam em nome da virtude. Há muros de ferro e muros de estrume. Mais ou menos obscuros e malcheirosos, todos são democraticamente muros escandalosos.
Muros podem surgir num instante. Muros de livros incompreensíveis nos espaços das estantes. Muros vistos do céu distante, muros impressionantes. São gigantescas as muralhas da China, tantas vezes invadidas!
Muros são genéricos, muros são específicos. Muros são artefatos bélicos, lógicos, jurídicos. Muros nas residências, nos tribunais e nos presídios. Um muro é uma vingança, uma sede, uma parede. Um muro é um arco, um marco, um defeito.
Um muro é um conceito.
Muros são concretos: muros entre ricos e pobres, entre homens e mulheres, entre ignorantes e doutores, entre foices e martelos, entre o dia e a noite, entre caridade e esmola, entre escola e sabedoria, centro e periferia, forma e conteúdo.
Muros escalados por atletas, por estetas, por malandros! Muros entre a bondade e a piedade, coletivo e identidade, a piedade e a humilhação, razão e loucura, o pensamento e a imaginação, a ação e o inconsciente, imperialismo e globalização, a casca e a fruta, o salmão e a truta, oriente e ocidente, presente e passado, imigrantes e emergentes, idiotas e insolentes, a roupa e a pele, o cozido e o assado, a carne e o osso, o colar e o pescoço, a mão e a luva, o vinho e a uva, o dentro e o fora, o feio e o belo, a flor e o mel, Iago e Otelo, Caim e Abel... Muros são limites, são percalços, são fetiches.
Muros são urros. Muros são murros, são muito burros!
Todos os muros deviam envergonhar, pois, se os muros pudessem ensinar alguma coisa, desistiriam-se.


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