São Paulo, sábado, 20 de maio de 2000


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LIVROS/LANÇAMENTOS

Dourado "desnovela" lembranças

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Uma primeira leva de sete obras do mineiro Autran Dourado, autor de 22 livros, está sendo reeditada pela Rocco. São romances selecionados e revistos pelo escritor de "O Risco do Bordado" (1970). Além desse último, a lista de reedições ainda inclui "A Serviço Del-Rei", "Ópera dos Mortos", "Um Artista Aprendiz", "Novelário de Donga Novais", "A Barca dos Homens" e "Os Sinos da Agonia".
Está previsto também o lançamento do inédito "Gaiola Aberta" (leia texto abaixo), memórias políticas e pessoais da época em que o escritor trabalhou como secretário de imprensa da Presidência da República no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961).
Nascido em Patos de Minas (MG), em 1926, Dourado começou a publicar em 1947 (com "Teia"). É um prosador profuso e ortodoxo, da mesma cepa literária de outros nomes conterrâneos e contemporâneos seus: Ciro dos Anjos, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Murilo Rubião, Paulo Mendes Campos.
Todos eles, segundo o professor Alfredo Bosi, narradores que têm um traço em comum: as andanças da memória, as paradas frequentes para a análise subjetiva dos acontecimentos e o talhe vernáculo da frase, que conserva o gosto da correção gramatical.
"São todos prosadores que trabalham a sintaxe e o léxico respeitando a tradição, embora, às vezes, afetem a sua página com algum modismo coloquial (...). Ficou assim em todos um misto de sintaxe elegante e limpa -o "escrever bem" (...)- e algumas ousadias no trato dos significados: aí o desrecalque modernista deixa perpassarem por essa prosa antiga sopros eróticos, imagens perversas, súbitas negações."
O "escrever bem", no caso de Dourado, é também resultado de sua constante preocupação com a forma e a elaboração de uma linguagem artística. Em 1973, ele publicou "Uma Poética de Romance: Matéria de Carpintaria", ensaio sobre seu processo de criação literária, a partir do material usado para escrever dois de seus romances ("Tempo de Amar" e "Sinos da Agonia").
Sua obra de ficcionista não esconde a preocupação. Dos escritores de sua geração, em Minas, talvez tenha sido ele quem mais mergulhou na chamada pesquisa estética, com objetivo de superar o que Bosi classifica como a crise da ficção introspectiva e a busca pela superação de um "realismo" menor e convencional.

Memória
Entre as obras dessa primeira leva de reedições, já estão lançados "Um Artista Aprendiz" (1989) e "Novelário de Donga Novais" (1976). Em ambos, o material privilegiado é a memória. Em "Um Artista Aprendiz", o narrador comenta: "(...) Eu também estava quase caindo no sono, mentiu João, quando apenas divagava, perdido e afogado naquele poço sem fim, brumoso e negro da memória, vogando como sempre".
Em "Novelário de Donga Novais", o personagem Donga é assim descrito: "De tanto que não dormia, seu Donga permanente nas suas insônias janeleiras: olho, ouvido, pensamento e língua da cidade, nossa perene memória".
O "Novelário" é um misto de novela e diário, preenchido com as experiências cotidianas do fofoqueiro Donga, um velho insone que passa o tempo na janela, a controlar a vida dos habitantes da pequena Duas Pontes (também cenário de outros romances de Dourado) e que representa uma espécie de memória coletiva do lugar. Diz o narrador:
"E ele foi (ia) tecendo dia a dia, noite e dia, desnovelando e novelando, o incessante novelário se fazendo, a memória e as fantasias insones, toda a história, dominó fantástico. De tão simples e corriqueiro tudo, humano. Não se podem chamar precisamente de sonho os vultos e imagens em movimento vistos com estes olhos que a terra há de comer, os fatos reais, corriqueiros, não-casos, contaminados pela imaginação e pela memória, pela insônia".
Mais ambicioso, "Um Artista Aprendiz" envereda por uma narrativa que pretende ser a dos chamados romances de formação. É a história de João Nogueira, jovem que sai do interior de Minas para Belo Horizonte com o objetivo de se tornar escritor.
Uma narrativa em duas vozes (a do narrador onisciente em terceira pessoa e a do protagonista em primeira), que se utiliza também do recurso gráfico do itálico para isolar uma da outra, e que mistura monólogos interiores com discurso indireto livre, vai dando conta da viagem interior e exterior do João adolescente.
A viagem de trem, composta por reminiscências do passado e experiências reveladoras do presente, é apenas o primeiro passo de sua iniciação na vida. Os estudos de filosofia, língua e literatura, bem como as novas relações pessoais que estabelece na cidade grande serão os passos seguintes.
Pontuado de referências literárias -a Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, Calderón de la Barca etc.- o romance ganha um tom didático difícil de engolir em literatura.
É verdade que escritores contemporâneos brasileiros como Autran Dourado superaram uma crise, mas parecem ter entrado em outra, a de uma prosa literária discursiva, ensaística e auto-referente, que não se cansa de falar de si mesma. Para essa, tudo indica que não encontraram solução.


Livro: Um Artista Aprendiz
  
Autor: Autran Dourado
Editora: Rocco
Quanto: R$ 27 (272 págs.)

Livro: Novelário de Donga Novais
   
Autor: Autran Dourado
Editora: Rocco
Quanto: R$ 15 (146 págs.)


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