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RESENHA DA SEMANA
Deuses proscritos
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
J ean Genet (1910-1986) foi
um escritor dos mais peculiares. Seu texto é resultado do confronto entre uma forma bem escrita, muitas vezes rebuscada e
floreada, e um conteúdo embrutecido, marginal.
Flores para falar de sangue.
Uma concepção de literatura
original e das mais contraditórias sobretudo aos olhos da tradição dos chamados "tough writers", os durões e seguidores, que
acreditam que a autenticidade
literária se conquista com uma
linguagem que mimetize a mais
crua realidade.
Conhecendo na própria carne
a brutalidade de uma vida entre
proscritos, na prisão, no roubo e
na prostituição, Genet militou
pela causa dos excluídos e injustiçados (dos palestinos aos Panteras Negras), mas sempre quis
escrever bonito. Tinha horror do
miserabilismo. Queria arrancar
a beleza da morte e da margem,
para ele a única beleza verdadeira, por trás das aparências.
Está aí o "milagre da rosa".
O pequeno "O Ateliê de Giacometti" explica, com o auxílio
das obras do artista suíço (1901-66), o que é essa beleza que o escritor buscava pela literatura e
que reconheceu no ateliê do pintor e escultor, embora este, ao
contrário de Genet, a buscasse
pelo despojamento da forma.
"A beleza tem apenas uma
origem: a ferida, singular, diferente para cada um, oculta ou
visível, que o indivíduo preserva
e para onde se retira quando
quer deixar o mundo para uma
solidão temporária, porém profunda. Há, portanto, uma diferença imensa entre essa arte e o
que chamamos o miserabilismo.
A arte de Giacometti parece
querer descobrir essa ferida secreta de todo ser e mesmo de todas as coisas, para que ela os ilumine", escreve Genet.
Em 1954, Alberto Giacometti o
encontrou num café em Paris.
"Foi a calvície do escritor que o
atraiu. Giacometti tinha especial interesse pela estrutura das
cabeças, e a ausência de cabelos
ajudava a revelá-la", escreve a
artista e tradutora Célia Euvaldo na orelha do livro.
Entre 54 e 58, Genet posou para vários retratos. "O Ateliê de
Giacometti", publicado pela primeira vez em livro, com fotografias de Ernst Scheidegger, em 63,
é mais do que o relato desses encontros. É o pretexto para uma
reflexão sobre essa "ferida que
ilumina".
Costuma ser desconcertante a
crítica de arte que, em geral, para falar de obras abstratas, tenta aproximá-las de uma imagem reconhecível, fazendo comparações como quem procura figuras nas nuvens. Genet não se
aproxima da obra dizendo que
ela parece isso ou aquilo. Uma
arte que está cheia de vida não
pode fazer a imitação da vida.
Não pode representar, porque
simplesmente é.
Diante da estátua de Osíris no
museu do Louvre, Genet diz:
"Tive medo porque se tratava,
sem dúvida nenhuma, de um
deus. Certas estátuas de Giacometti provocam em mim uma
emoção bem próxima desse terror, e um fascínio quase tão
grande (...). Uma de suas estátuas num quarto, e o quarto vira um templo. (...) Na frente dessas mulheres tenho o sentimento de estar diante de deusas
-deusas e não a estátua de
uma deusa- (...) não conheço
braço mais intensamente, mais
expressamente braço do que
aquele".
O acúmulo de vida que vê nas
obras de Giacometti já não lhe
permite falar de representações:
"Os rostos pintados por Giacometti parecem ter reunido tamanha vida que já não lhes resta nenhum segundo a viver, nenhum gesto a fazer, e (não que
tenham acabado de morrer) conhecem enfim a morte, pois um
excesso de vida ali está acumulado. (...) Estão no ponto extremo onde a vida se assemelha à
matéria inanimada".
Assim também, Genet diz do
seu próprio retrato: "Vem ao
meu encontro, funde-se em mim
e se precipita de volta na tela de
onde partira, com uma presença, uma realidade e um relevo
terríveis. (...) Quando tiro o quadro do ateliê para olhá-lo, fico
incomodado, pois sei que estou
tanto na tela como na frente dela, olhando-a".
Para o escritor, é esse ponto
em que a vida se assemelha à
morte que mais impressiona,
porque só daí, dessa ferida, na
mais profunda solidão, onde as
coisas são apenas o que são, pode sair alguma verdade e alguma beleza. "Toda obra de arte
que queira alcançar as mais
grandiosas proporções deve,
com uma paciência e uma aplicação infinitas desde os momentos de sua elaboração, descer aos milênios, juntar-se, se
possível, à noite imemorial povoada de mortos que irão se reconhecer nessa obra."
Nessa arte que busca o próprio
ser do objeto, e que o isola em
sua unicidade, sua solidão, a
imagem que está sobre a tela e o
objeto real que ela representa se
fundem. A solidão do objeto se
comunica com a solidão mais
profunda do espectador: ""Estou
só", parece nos dizer o objeto (...).
Se sou apenas o que sou, sou indestrutível. Sendo o que sou e
sem reservas, minha solidão conhece a sua"."
Para Genet, é só nessa ferida
em que os vivos e os mortos se
comunicam que os homens podem vislumbrar por fim o que os
une, o que lhes é comum e o que
têm de mais irredutível: "A solidão de ser exatamente igual a
qualquer outro".
Livro: O Ateliê de Giacometti
Autor: Jean Genet
Tradutora: Célia Euvaldo
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 21 (96 págs.)
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