São Paulo, sábado, 20 de maio de 2000


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MÚSICA ERUDITA

Freixo cintila Bach em Mariana

ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O uvir Bach é sempre uma alegria. Ouvir Bach, tão bem tocado por Elisa Freixo, no órgão barroco da Sé de Mariana (MG), é uma alegria de outra ordem e uma educação que passa além da música.
Em seu concerto de domingo passado, a organista paulista (radicada em Mariana desde 1988) interpretou peças de três gerações da família Bach. Começando com o "Concerto em Fá Maior", de Johann Sebastian (1685-1750), na verdade a transcrição para órgão de um concerto italiano para cordas.
Elisa Freixo tem uma naturalidade rara e uma segurança proporcional. Toca fácil, sem medo da música, deixando as cintilações e veludos da polifonia descerem da tribuna como um maravilhamento. Mas sem mistério: sua arte é compreensivelmente humana, generosa e clara em pleno espaço do incompreensível.
"Cintilações" e "veludos" são só aproximações para as indefiníveis virtudes desse órgão. Construído pelo organeiro alemão Art Schnitger (1648-1719), foi enviado pelo rei d. João 5º a Mariana em 1751. Schnitger foi um dos mais renomados construtores de órgão de todos os tempos, comparável a um Stradivarius ou Guarnieri; e o instrumento que está em Mariana é hoje um dos mais importantes órgãos barrocos fora da Europa. Tem dois teclados e 194 tubos. O som é invariavelmente lindo, em qualquer combinação dos 18 registros; chamam a atenção, em especial, os timbres brilhantes de trombeta e os tenores amistosos e tranquilos.
De Johann Christoph Bach (1642-1703), um tio de Johann Sebastian, Elisa Freixo tocou uma "Ária e Variações". Simpática e bem ordenada até a variação final, envereda depois por harmonias aberratórias, cheias de cromatismos e italianismos. O bloco do meio do concerto teve ainda três peças curtas de Carl Philip Emanuel Bach (1714-1788), para "relógio" (isto é: realejo). Carl Philip é sempre engenhoso e charmoso. E engenho e charme, juntos, definem os propósitos da geração rococó, contra os encantos mais severos da inteligência barroca.
Foi de C.P.E. Bach, também, a peça final, uma "Sonata em Lá Menor". Ainda distante dos humores pré-românticos que marcariam suas peças mais conhecidas, a "Sonata" mesmo assim deu chance ao Schnitger para falar em tons variados, do mais íntimo e confidente ao luminoso e sem ambivalência. A Sé de Mariana tem o tamanho perfeito para esse órgão perfeito e não tem afãs de ajudar a música com eco. (O órgão pode ser ouvido num bom CD de Freixo para o selo Paulus: "Órgãos Históricos do Brasil Vol. 2"; mas nada se compara ao som vivo no espaço vivo da Sé.)
Seria só mais um concerto bonito, num domingo bonito, numa cidade bonita de Minas. Mas representa muito mais: que alguém tenha essa competência e dedicação, para fazer música nesse nível, deveria ser motivo de orgulho nacional. Hoje está mais para o desalento. Dá tristeza pensar que o projeto da Fundação Cultural da Arquidiocese de Mariana, responsável pela reativação desse órgão, corre sério risco de ser interrompido. Com 13 anos de atividade e cerca de mil concertos realizados, não é beneficiário de nenhuma espécie de patrocínio.
Não existe instrumento comparável a esse órgão no Brasil. Constitui patrimônio prioritário para quem se preocupa com música no país. Nas mãos de Elisa Freixo, é um patrimônio vivo, renascido toda semana em forma de música. Por algum tempo ainda, não há melhor programa de domingo ao meio-dia do que escutar o concerto da Sé. Oxalá esse tempo se estenda, para preservar com dignidade a arte tão digna de Elisa Freixo no órgão de Mariana.



Concerto: Elisa Freixo interpreta Bach e peças para órgão barroco
    
Quando: às sextas, às 11h, e aos domingos, às 12h15
Onde: Sé de Mariana (tel. 0/xx/31/557-1799)
Quanto: R$ 6




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