São Paulo, sexta-feira, 20 de julho de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

A estranha relação da magia com o futebol

Desde que os bretões começaram a chutar o crânio de seus adversários, inventando o que mais tarde se chamou ""esporte bretão", um tipo de jogo também conhecido como futebol, nunca houve técnica mais eficaz do que a superstição, que é mais antiga do que a Bretanha inteira.
Digo isso sem defender a genial tática do Felipão, que afinal conseguiu suada vitória contra o Peru na base do azul -o mesmo azul que dá sorte a Roberto Carlos e ficou sendo uma metáfora da felicidade como um todo, na base do ""tudo azul", incluindo o azul de nosso planeta Terra, que apesar de azul não é lá essas coisas em bem-aventurança.
A jogada foi simples. Com derrotas sucessivas nas costas, a seleção que vestia camisa amarela, como aquela do samba do Ary Barroso, ""botou fogo nela" e vestiu a camisa azul, que antes fora camisa reserva ao tempo do antigo uniforme branco da seleção com o qual ganhamos a Copa do Mundo na Suécia.
Parece que deu certo. E abrimos o necessário debate sobre o papel da superstição não apenas no futebol mas na vida em geral. Como supersticioso desde os tempos em que habitei o ventre de minha mãe (isso não vem ao caso, mas é uma verdade que assumo e calo), encontro afinal um traço de simpatia para com o novo treinador da seleção brasileira.
Por sinal, futebol e superstição sempre foram afins. Tivemos o caso do sapo do Arruda, lenda comum do Vasco e do São Cristóvão. E a verdadeira história das cortinas do Botafogo de Futebol e Regatas, ao tempo em que o clube era presidido pelo Carlito Rocha, que, se fosse baiano, seria o mais eficiente pai-de-santo de nossos 500 anos de história.
Já dizia João Saldanha que, se macumba resolvesse alguma coisa no futebol, os campeonatos baianos terminariam empatados, com todos os times em primeiro lugar. Nunca se sabe, mas pode ser verdade ou não, depende da eficácia da macumba praticada.
Vamos ao sapo do Arruda, que foi macumba eficaz. Reza a lenda que o Vasco encheu o São Cristóvão, dando-lhe um banho de 12 a 0. Rivais no mesmo bairro carioca, o São Cristóvão estava habituado a perder de todos os times do Rio, inclusive do Vasco. Mas nunca de tanto. Um torcedor ficou insultado e, à meia-noite de uma sexta-feira, 13, pulou o muro do estádio vascaíno e enterrou um sapo no campo adversário, ao lado de uma das bandeirinhas do córner.
Passaram-se anos, cinco, segundo alguns, oito, segundo outros, e o Vasco nunca mais venceu o São Cristóvão. Vencia os adversários, era o Expresso da Vitória, venceu até mesmo o Arsenal, de Londres, que aqui veio e goleou a todos nós. Mas perdia para o São Cristóvão.
A diretoria do Vasco decidiu acabar com aquilo. Contratou escavadeiras e esburacou o campo todo. Não houve pedaço de galinha ou de passarinho que não fosse peneirado, até que se fizesse uma pirâmide de ossos. Um pai-de-santo importado de Campos molhou tudo com cachaça também de Campos, deu passes, fumou charutos baianos e tacou fogo nos ossos todos, entre os quais deviam estar os do sapo do Arruda. Deu certo. O Vasco voltou a dar goleadas vexatórias no São Cristóvão, acho que até hoje.
O caso das cortinas foi mais sofisticado. O Botafogo tinha uma sede social famosa, em estilo colonial, muito usada para bailes, festas de formatura e até mesmo para cerimônias de culto. A comunidade judaica ainda não tinha sinagoga aqui no Rio e alugava a sede do Botafogo para os grandes dias de seu calendário religioso.
Antes de cada jogo, Carlito Rocha, presidente e grande benemérito do clube, ia a todas as cortinas da sede e dava um nó nelas. Era tiro e queda. Até que, num domingo, o Botafogo foi jogar em Madureira, contra o time homônimo, e terminou o primeiro tempo perdendo de 2 a 0. Estranhando aquilo, Carlito Rocha teve uma iluminação: as cortinas! Tomou um táxi, voou para a sede. Um empregado novo, preparando o salão para um baile à noite, estranhara as cortinas amarradas e desfizera o nó de cada uma. Carlito Rocha invadiu o salão, deu nó em todas elas e voltou para Madureira. O jogo virara: o Botafogo vencia de 4 a 2.
Acredito que cada torcedor, seja de que clube for, deva ter histórias parecidas, individuais ou coletivas. Conheci um sujeito, chamado Bório, que torcia pelo Flamengo e só ia a jogo levando um guarda-chuva. Eu próprio, durante anos, usava sempre o mesmo sapato para ir ver o meu time jogar. Perdendo ou ganhando, eu ficava com a consciência tranquila: fizera a minha parte. Tive um primo que, antes de cada partida do Flamengo, ia ao banheiro e desfiava todo o rolo de papel higiênico. Por coincidência, era um cara bastante parecido com o Felipão, que, além da camisa azul, deve ter macetes equivalentes.
De maneira que não estranho a nova tática adotada. Da mesma forma que não se deve mexer em time que está ganhando (não é bem esse o caso de nosso escrete), não se deve mexer em superstição que está dando certo. Depois do azul quebramos a urucubaca. Podemos voltar ao amarelo.



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