São Paulo, sábado, 20 de julho de 2002

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"A DIVINA PARÓDIA"

Autor faz a descida de Dante e Beatriz para a vida banal

XICO SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

O divertido em "A Divina Paródia" é a graça que o autor faz com a dita grande literatura. O grandioso e o sagrado descem do altar para a vida normal, pequena, desesperada até. E lá se vão os pobres simulacros de Dante e Beatriz sem a arrogância, sem véus ou mofo de antiga prosa.
Álvaro Cardoso Gomes, autor de tal aventura picaresca, rouba a pompa e circunstância dos heróis da famosa e dantesca comédia. Diogo Cão, o protagonista de caminhos errantes, sofre uma lobotomia, para começo de conversa e reconhecimento do inferno -essa eterna invenção dos outros.
O menino Diogo é um lesado, sem controle sequer sobre urina e fezes. Sua mamadeira contém um veneno que irá influenciá-lo até as profundezas: a narrativa melodramática da mãe. Ela o maltrata com histórias inventadas sobre o pai, nunca visto pelo pequeno.
Na boca materna, Édipo é uma desgraça ainda maior, como fosse narrada por algum Almodóvar ou por Janete Clair, resultado das novelas que a desalmada senhora consumiu nos verdes anos.
Maiores, porém, são os poderes de Deus. Diogo é internado no colégio O Sagrado Pulmão de Jesus, escola de perversões e sadomasoquismos do jogo supostamente católico. ""Vós que entrais deixai toda esperança", eis a inscrição da entrada de tal casa de corretivos.
E o rapaz, calouro no inferno, sofreu a primeira sabatina do Padre Hermeneuta, curioso sobre a contabilidade das masturbações do pequeno, sobre as diferenças entre desmaio e gozo, sobre o sexo anal, traduzido na ocasião pelo inocente e idílico "troca-troca".
O próprio padre fez as contas: "Doz mil, novecentas e sessenta masturbações". Soma da safadeza do menino Diogo registrada no livro da moral pura e dos bons costumes do citado colégio interno.
"A Divina Paródia" é dividida, e preste atenção sempre na ironia do formato, em três jornadas: "O Sagrado Pulmão de Jesus", "The Creatures of Night Circus" e "Os Círculos do Paraíso".
Mas o livro não brinca apenas com a comédia na qual Beatriz poderia ser uma noiva árabe de trejeitos à Jade, a da novela "O Clone". Tem a Bíblia a correr solta, "Odisséia", "Os Lusíadas", o "Cândido" possível de Voltaire e, pasmem senhores, "King Kong", o filme.
Uma gozação bacana, sem medo de divertir o leitor, desse autor de Batatais (SP), homem sério de 58 anos, ganhador de um Prêmio Nestlé de literatura com outra boa prosa, "O Sonho da Terra".


A Divina Paródia    
Autor: Álvaro Cardoso Gomes
Editora: Globo
Quanto: R$ 39 (459 págs.)



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