São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2006

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"Páginas" muda, mas depoimentos continuam

Após polêmica, Globo cogitou tirá-los do ar na segunda fase, que começa amanhã

Intelectuais debatem a novidade da novela das oito e se dividem entre achá-la "muito democratizadora" e "totalmente dispensável"


LAURA MATTOS
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Páginas da Vida" entra na segunda fase a partir de amanhã, e o autor, Manoel Carlos, decidiu não retirar do ar os depoimentos reais que encerram cada capítulo da novela.
A Globo cogitou acabar com a novidade após o sexto episódio, quando foram veiculadas as polêmicas declarações de uma mulher de 68 anos a respeito de orgasmo atingido com masturbação, ao som de "Côncavo e Convexo", de Roberto Carlos.
À época, a cúpula da emissora avaliou que a transição para a segunda fase, quando a história saltará de 2001 para 2006, seria uma oportunidade para abandonar os testemunhos. Desde então, o cuidado com o conteúdo dos relatos foi redobrado e o tom mudou. A ordem é emocionar, jamais escandalizar (veja quadro). Nessa linha mais "light", eles sobreviveram.
Renato Janine Ribeiro, professor de filosofia da Universidade de São Paulo, pode comemorar. Para ele, os relatos ao final de cada capítulo são uma iniciativa, antes de tudo, "democratizadora". "É a primeira vez que a gente vê depoimentos populares desse tipo no ar."
"Aquela senhora pode ter ido um pouco longe demais ao falar da masturbação, mas, independentemente disso, o que está em jogo é o discurso de pessoas que são totalmente anônimas."
Ao que parece, em sua opinião, "a idéia é justamente dar voz a quem não tem voz, a quem não aparece na TV, nunca tem lugar nesse espaço".
O discurso é semelhante ao do autor da novela. "Os depoimentos foram pensados pelo Jayme Monjardim [diretor] e por mim para fazer com que a voz das ruas chegasse à novela e, conseqüentemente, ao público que vê televisão", afirmou à Folha Manoel Carlos.
A escritora e pesquisadora da USP Renata Pallotini (autora de "O que É Dramaturgia"), no entanto, embora reconheça que a intenção possa ter sido "trazer a vida real para perto da ficção", afirma crer que o objetivo não tenha sido cumprido.
"A própria ficção já traz a opinião do autor e, com o depoimento, reforça demais, pesa demais. É redundante, o telespectador tem a capacidade de, pela história, chegar a suas próprias conclusões. Essa idéia de levar a gente a concluir algo ficou pesada, "over'", avaliou.
Manoel Carlos afirmou, sem conhecer a opinião de Pallotini, que o sentido dos depoimentos é o de reforçar a ligação da vida "real" com o que se passa nos capítulos. "Ao encerrar a novela com os depoimentos, é como se eu perguntasse aos telespectadores: "Gostaram dessas cenas de ficção que acabaram de ver? Pois então agora fiquem com uma cena real, que foi vivida por uma pessoa comum"."
Para Janine Ribeiro, é natural que esse tipo de depoimento popular surgisse em uma telenovela. "As novelas são o que de melhor a televisão brasileira criou e terminaram por se tornar um espaço privilegiado de discussão pública no país."
Para o professor da USP, a novela foi, durante muito tempo, mais realista do que o "Jornal Nacional" e ainda é mais progressista e menos reacionária que os programas de humor.

"O Dono do Mundo"
O psicanalista Tales Ab'Sáber acredita que a polêmica em torno dos depoimentos reais de "Páginas da Vida" tenha sido acalorada porque as novelas "ocupam um lugar privilegiado na atenção das pessoas e na construção de seu universo imaginário". "Muitos acharam um escândalo uma senhora negra e velha ter contado a primeira vez que gozou. O mais curioso é que esse tipo de discurso sobre a sexualidade pode no outdoor, pode antes e depois da novela, mas na novela não pode. Esse espaço da teledramaturgia, de fato, não é banal. Ele agencia questões e convoca a vida imaginária das pessoas. Algumas, talvez, só tenham vida imaginária aí", defendeu.
Ele vê no evento do relato ao som de "Côncavo e Convexo" uma reação semelhante, embora em menor escala, à que outra novela, "O Dono do Mundo", provocou no público em 1991.
Em artigo publicado no caderno "Mais!", da Folha, em 2003, Ab'Sáber havia chamado a atenção para o fato de que muitas pessoas desligaram a TV ou mudaram de canal no capítulo em que o protagonista e vilão da trama, Felipe Barreto (Antonio Fagundes), tirava a virgindade da personagem de Malu Mader. Ela era a mocinha da trama e, segundo a história, estaria sendo levada a trair seu noivo com o vilão. A ação de Felipe Barreto, segundo Ab'Sáber, revelava "o poder sádico e cínico de parcela da elite" brasileira. Esse retrato, inesperado numa novela em sua opinião, teria provocado um "curto-circuito na esfera pública".


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