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"Páginas" muda, mas depoimentos continuam
Após polêmica, Globo cogitou tirá-los do ar na segunda fase, que começa amanhã
Intelectuais debatem a novidade da novela das oito e se dividem entre achá-la "muito democratizadora" e "totalmente dispensável"
LAURA MATTOS
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
"Páginas da Vida" entra na
segunda fase a partir de amanhã, e o autor, Manoel Carlos,
decidiu não retirar do ar os depoimentos reais que encerram
cada capítulo da novela.
A Globo cogitou acabar com a
novidade após o sexto episódio,
quando foram veiculadas as polêmicas declarações de uma
mulher de 68 anos a respeito de
orgasmo atingido com masturbação, ao som de "Côncavo e
Convexo", de Roberto Carlos.
À época, a cúpula da emissora avaliou que a transição para
a segunda fase, quando a história saltará de 2001 para 2006,
seria uma oportunidade para
abandonar os testemunhos.
Desde então, o cuidado com o
conteúdo dos relatos foi redobrado e o tom mudou. A ordem
é emocionar, jamais escandalizar (veja quadro). Nessa linha
mais "light", eles sobreviveram.
Renato Janine Ribeiro, professor de filosofia da Universidade de São Paulo, pode comemorar. Para ele, os relatos ao final de cada capítulo são uma
iniciativa, antes de tudo, "democratizadora". "É a primeira
vez que a gente vê depoimentos
populares desse tipo no ar."
"Aquela senhora pode ter ido
um pouco longe demais ao falar
da masturbação, mas, independentemente disso, o que está
em jogo é o discurso de pessoas
que são totalmente anônimas."
Ao que parece, em sua opinião, "a idéia é justamente dar
voz a quem não tem voz, a
quem não aparece na TV, nunca tem lugar nesse espaço".
O discurso é semelhante ao
do autor da novela. "Os depoimentos foram pensados pelo
Jayme Monjardim [diretor] e
por mim para fazer com que a
voz das ruas chegasse à novela
e, conseqüentemente, ao público que vê televisão", afirmou à
Folha Manoel Carlos.
A escritora e pesquisadora da
USP Renata Pallotini (autora
de "O que É Dramaturgia"), no
entanto, embora reconheça
que a intenção possa ter sido
"trazer a vida real para perto da
ficção", afirma crer que o objetivo não tenha sido cumprido.
"A própria ficção já traz a opinião do autor e, com o depoimento, reforça demais, pesa
demais. É redundante, o telespectador tem a capacidade de,
pela história, chegar a suas próprias conclusões. Essa idéia de
levar a gente a concluir algo ficou pesada, "over'", avaliou.
Manoel Carlos afirmou, sem
conhecer a opinião de Pallotini,
que o sentido dos depoimentos
é o de reforçar a ligação da vida
"real" com o que se passa nos
capítulos. "Ao encerrar a novela com os depoimentos, é como
se eu perguntasse aos telespectadores: "Gostaram dessas cenas de ficção que acabaram de
ver? Pois então agora fiquem
com uma cena real, que foi vivida por uma pessoa comum"."
Para Janine Ribeiro, é natural que esse tipo de depoimento
popular surgisse em uma telenovela. "As novelas são o que de
melhor a televisão brasileira
criou e terminaram por se tornar um espaço privilegiado de
discussão pública no país."
Para o professor da USP, a
novela foi, durante muito tempo, mais realista do que o "Jornal Nacional" e ainda é mais
progressista e menos reacionária que os programas de humor.
"O Dono do Mundo"
O psicanalista Tales Ab'Sáber acredita que a polêmica em
torno dos depoimentos reais de
"Páginas da Vida" tenha sido
acalorada porque as novelas
"ocupam um lugar privilegiado
na atenção das pessoas e na
construção de seu universo
imaginário". "Muitos acharam
um escândalo uma senhora negra e velha ter contado a primeira vez que gozou. O mais
curioso é que esse tipo de discurso sobre a sexualidade pode
no outdoor, pode antes e depois
da novela, mas na novela não
pode. Esse espaço da teledramaturgia, de fato, não é banal.
Ele agencia questões e convoca
a vida imaginária das pessoas.
Algumas, talvez, só tenham vida imaginária aí", defendeu.
Ele vê no evento do relato ao
som de "Côncavo e Convexo"
uma reação semelhante, embora em menor escala, à que outra
novela, "O Dono do Mundo",
provocou no público em 1991.
Em artigo publicado no caderno "Mais!", da Folha, em
2003, Ab'Sáber havia chamado
a atenção para o fato de que
muitas pessoas desligaram a
TV ou mudaram de canal no
capítulo em que o protagonista
e vilão da trama, Felipe Barreto
(Antonio Fagundes), tirava a
virgindade da personagem de
Malu Mader. Ela era a mocinha
da trama e, segundo a história,
estaria sendo levada a trair seu
noivo com o vilão. A ação de
Felipe Barreto, segundo Ab'Sáber, revelava "o poder sádico e
cínico de parcela da elite" brasileira. Esse retrato, inesperado numa novela em sua opinião, teria provocado um "curto-circuito na esfera pública".
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