São Paulo, quinta, 20 de agosto de 1998

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A sanha tributária, o déficit público e Machado

EDUARDO GIANNETTI

Colunista da Folha

Impasse em Itaguaí. O doutor Bacamarte tinha razão: saúde mental é dever do Estado. Os loucos mansos e furiosos da cidade -e quem ousaria dizer quantos seriam? -não podiam prosseguir como estavam, soltos nas ruas, à mercê de seus surtos e esquisitices. A criação de um grande e modelar hospício público, todos concordavam, era uma prioridade inadiável.
Mas como financiar a obra? Quem iria pagar pela construção do prédio e pelos custos de internação dos dementes? O orçamento da cidade -estourado como sempre-, não comportava mais nada. Pior: tudo em Itaguaí parecia estar já tributado. De onde tirar o dinheiro?
Foi aí que, como relata Machado de Assis, o narrador de "O Alienista", a Câmara Municipal encontrou uma saída inovadora: "Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros; quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes essa quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última benção na sepultura".
Pronto! Estava desfeito o nó. O técnico do governo, é verdade, "perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa", mas o doutor Bacamarte nunca precisou reclamar por falta de verbas. O resto do conto é conhecido. Se o projeto do hospício, demasiado à frente de seu tempo, acabou fracassando, nem por isso o novo tributo deixou de existir. Simplesmente, perpetuou-se. Itaguaí não é aqui.
A inventividade brasileira em matéria tributária não nasceu ontem. Ela tem raízes fundas na nossa cultura patrimonialista. Diversos episódios recentes -como o da prorrogação anual da CPMF (que ora se arrasta no Congresso) e o da cobrança retroativa do ICMS na habilitação de celulares (que ora se arrasta na Justiça) -mostram que a tradição continua viva e forte.
Qual o número exato de tributos existentes no Brasil? Qualquer que seja a resposta, duvido que exista outro país no mundo com uma fauna de impostos, taxas e contribuições tão diversificada e exuberante quanto a nossa. O exemplo mais pitoresco com que me deparei recentemente -digno da Itaguaí machadiana- é, sem dúvida, o caso do "imposto sobre postes".
Pressionadas por débitos vencidos junto às concessionárias de energia elétrica, prefeituras do interior paulista e fluminense inventaram uma forma criativa para saldar suas dívidas e fazer caixa: passaram a cobrar das empresas distribuidoras de energia uma taxa de locação e uso do solo por cada poste da rede elétrica plantado no município.
Se o lance emplacar na Justiça, adivinhe quem paga a conta?
Com valores que variam de R$ 20 a R$ 38,44 por poste (os municípios mais precavidos já foram logo indexando a cobrança em Ufirs para evitar surpresas), a iniciativa tem tudo para se tornar uma mina de receitas, um verdadeiro ouro de aluvião tributário. Como ninguém pensou nisso antes!? É de tirar o chapéu. A vida imita a arte. Imaginem se a moda pega!
A necessidade é a mãe da invenção. O pano de fundo de todo esse surto criativo que toma conta do patronato político brasileiro é o estado calamitoso a que chegaram nossas contas públicas. O pitoresco das árvores isoladas apenas reflete o drama picaresco da floresta. Vamos por partes.
Primeiro, o lado da receita. Como tem evoluído historicamente a arrecadação de impostos no Brasil?
De 1947 para cá, a nossa carga tributária mais do que dobrou em relação ao tamanho da economia, passando de 14% para 31% do PIB. (Na Argentina, para efeito de comparação, ela fica ao redor de 20% do PIB).
Trocando em miúdos, isso significa que quase um terço de todo o valor criado pelo trabalho dos brasileiros anualmente tem como destino os cofres públicos.
Na última década, graças ao neoliberalismo selvagem que assola o país, a arrecadação de impostos cresceu nada menos que 26% acima do crescimento da economia no mesmo período. Em nenhum outro momento de nossa história a carga tributária foi tão alta quanto ela é hoje em dia.
Seria razoável imaginar que pelo menos agora o Estado brasileiro estivesse com as suas contas em equilíbrio, ou seja, consumindo e gastando um valor compatível com aquilo que arrecada. Na realidade, porém, o que ocorre é justamente o oposto. A despesa engole a receita.
O fato espantoso é que, não obstante o aumento cavalar da arrecadação nos últimos anos, a despesa agregada do governo (União, Estados e municípios) tem crescido de uma forma ainda mais pronunciada do que a receita. O resultado líquido dessa diferença aparece no aumento do déficit nominal consolidado do setor público.
No ano passado, a diferença entre arrecadação e gasto público foi da ordem de 6,1% do PIB. Este ano, ela caminha para a marca de 7% do PIB, ou seja, cerca de R$ 55 bilhões. Trocando em graúdos, isso significa que o rombo financeiro do nosso setor público está engolindo o equivalente ao valor de mercado de duas Telebrás e meia por ano.
Como explicar esse quadro? Se ao aumento do gasto e do déficit públicos correspondesse um avanço sensível na qualidade dos serviços prestados pelo Estado (saúde e educação); ou se ele refletisse uma elevação proporcional no investimento em infra-estrutura (obras e equipamento), então, a deterioração do quadro fiscal continuaria preocupante do ângulo macroeconômico, mas teria alguma legitimidade aos olhos da sociedade.
O vexame é que nem isso. O que explica o mistério profundo e insondável do drama fiscal são basicamente duas coisas: em primeiro lugar, a brutal conta de juros pagos pelo governo sobre um estoque crescente de dívida interna; em segundo, o calamitoso déficit com os benefícios previdenciários dos três milhões de inativos e pensionistas do setor público fora do INSS.
Juntas, essas duas contas deverão perfazer 11,2% do PIB (ou R$ 89 bilhões) este ano.
A absorção de poupança externa e as privatizações vêm permitindo ao Brasil viver além dos seus meios e adiar a hora da verdade fiscal. O primeiro mandato de FHC foi um habilidoso exercício na arte de ganhar e comprar tempo.
A grande questão agora é saber por mais quanto tempo ainda nos será permitido continuar ganhando tempo.
Abri com Machado, fecho com ele: "Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos". Toda procrastinação tem limites. Um dia o infinito acaba. As eleições estão aí. Creio que não seria má idéia cobrar dos candidatos uma posição clara e realista sobre como pretendem lidar com a encrenca coletiva em que estamos metidos.



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