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A sanha tributária, o déficit público e Machado
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Impasse em Itaguaí. O doutor Bacamarte tinha razão:
saúde mental é dever do Estado. Os loucos mansos e furiosos
da cidade -e quem ousaria
dizer quantos seriam? -não
podiam prosseguir como estavam, soltos nas ruas, à mercê
de seus surtos e esquisitices. A
criação de um grande e modelar hospício público, todos
concordavam, era uma prioridade inadiável.
Mas como financiar a obra?
Quem iria pagar pela construção do prédio e pelos custos de
internação dos dementes? O
orçamento da cidade -estourado como sempre-, não
comportava mais nada. Pior:
tudo em Itaguaí parecia estar
já tributado. De onde tirar o
dinheiro?
Foi aí que, como relata Machado de Assis, o narrador de
"O Alienista", a Câmara Municipal encontrou uma saída
inovadora: "Depois de longos
estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos
cavalos dos enterros; quem
quisesse emplumar os cavalos
de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes essa
quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última benção
na sepultura".
Pronto! Estava desfeito o nó.
O técnico do governo, é verdade, "perdeu-se nos cálculos
aritméticos do rendimento
possível da nova taxa", mas o
doutor Bacamarte nunca precisou reclamar por falta de
verbas. O resto do conto é conhecido. Se o projeto do hospício, demasiado à frente de seu
tempo, acabou fracassando,
nem por isso o novo tributo
deixou de existir. Simplesmente, perpetuou-se. Itaguaí não é
aqui.
A inventividade brasileira
em matéria tributária não
nasceu ontem. Ela tem raízes
fundas na nossa cultura patrimonialista. Diversos episódios
recentes -como o da prorrogação anual da CPMF (que
ora se arrasta no Congresso) e
o da cobrança retroativa do
ICMS na habilitação de celulares (que ora se arrasta na Justiça) -mostram que a tradição continua viva e forte.
Qual o número exato de tributos existentes no Brasil?
Qualquer que seja a resposta,
duvido que exista outro país
no mundo com uma fauna de
impostos, taxas e contribuições
tão diversificada e exuberante
quanto a nossa. O exemplo
mais pitoresco com que me deparei recentemente -digno da
Itaguaí machadiana- é, sem
dúvida, o caso do "imposto sobre postes".
Pressionadas por débitos
vencidos junto às concessionárias de energia elétrica, prefeituras do interior paulista e fluminense inventaram uma forma criativa para saldar suas
dívidas e fazer caixa: passaram a cobrar das empresas distribuidoras de energia uma taxa de locação e uso do solo por
cada poste da rede elétrica
plantado no município.
Se o lance emplacar na Justiça, adivinhe quem paga a conta?
Com valores que variam de
R$ 20 a R$ 38,44 por poste (os
municípios mais precavidos já
foram logo indexando a cobrança em Ufirs para evitar
surpresas), a iniciativa tem tudo para se tornar uma mina de
receitas, um verdadeiro ouro
de aluvião tributário. Como
ninguém pensou nisso antes!?
É de tirar o chapéu. A vida
imita a arte. Imaginem se a
moda pega!
A necessidade é a mãe da invenção. O pano de fundo de todo esse surto criativo que toma
conta do patronato político
brasileiro é o estado calamitoso a que chegaram nossas contas públicas. O pitoresco das
árvores isoladas apenas reflete
o drama picaresco da floresta.
Vamos por partes.
Primeiro, o lado da receita.
Como tem evoluído historicamente a arrecadação de impostos no Brasil?
De 1947 para cá, a nossa carga tributária mais do que dobrou em relação ao tamanho
da economia, passando de 14%
para 31% do PIB. (Na Argentina, para efeito de comparação,
ela fica ao redor de 20% do
PIB).
Trocando em miúdos, isso
significa que quase um terço
de todo o valor criado pelo trabalho dos brasileiros anualmente tem como destino os cofres públicos.
Na última década, graças ao
neoliberalismo selvagem que
assola o país, a arrecadação de
impostos cresceu nada menos
que 26% acima do crescimento
da economia no mesmo período. Em nenhum outro momento de nossa história a carga tributária foi tão alta quanto ela
é hoje em dia.
Seria razoável imaginar que
pelo menos agora o Estado
brasileiro estivesse com as suas
contas em equilíbrio, ou seja,
consumindo e gastando um
valor compatível com aquilo
que arrecada. Na realidade,
porém, o que ocorre é justamente o oposto. A despesa engole a receita.
O fato espantoso é que, não
obstante o aumento cavalar da
arrecadação nos últimos anos,
a despesa agregada do governo
(União, Estados e municípios)
tem crescido de uma forma
ainda mais pronunciada do
que a receita. O resultado líquido dessa diferença aparece
no aumento do déficit nominal consolidado do setor público.
No ano passado, a diferença
entre arrecadação e gasto público foi da ordem de 6,1% do
PIB. Este ano, ela caminha para a marca de 7% do PIB, ou
seja, cerca de R$ 55 bilhões.
Trocando em graúdos, isso significa que o rombo financeiro
do nosso setor público está engolindo o equivalente ao valor
de mercado de duas Telebrás e
meia por ano.
Como explicar esse quadro?
Se ao aumento do gasto e do
déficit públicos correspondesse
um avanço sensível na qualidade dos serviços prestados pelo Estado (saúde e educação);
ou se ele refletisse uma elevação proporcional no investimento em infra-estrutura
(obras e equipamento), então,
a deterioração do quadro fiscal continuaria preocupante
do ângulo macroeconômico,
mas teria alguma legitimidade
aos olhos da sociedade.
O vexame é que nem isso. O
que explica o mistério profundo e insondável do drama fiscal são basicamente duas coisas: em primeiro lugar, a brutal conta de juros pagos pelo
governo sobre um estoque crescente de dívida interna; em segundo, o calamitoso déficit
com os benefícios previdenciários dos três milhões de inativos e pensionistas do setor público fora do INSS.
Juntas, essas duas contas deverão perfazer 11,2% do PIB
(ou R$ 89 bilhões) este ano.
A absorção de poupança externa e as privatizações vêm
permitindo ao Brasil viver
além dos seus meios e adiar a
hora da verdade fiscal. O primeiro mandato de FHC foi um
habilidoso exercício na arte de
ganhar e comprar tempo.
A grande questão agora é saber por mais quanto tempo
ainda nos será permitido continuar ganhando tempo.
Abri com Machado, fecho
com ele: "Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos". Toda procrastinação tem limites. Um
dia o infinito acaba. As eleições estão aí. Creio que não seria má idéia cobrar dos candidatos uma posição clara e realista sobre como pretendem lidar com a encrenca coletiva
em que estamos metidos.
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