São Paulo, quarta-feira, 20 de setembro de 2000

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ARTE E PSICANÁLISE
Ligado a Oswald e ao Movimento Antropofágico via Freud, Flávio de Carvalho chegou a ir a Viena
Artista plástico fez "retratos psicológicos"

Arquivo Pessoal
O escritor Oswald de Andrade (esq.) e o engenheiro, arquiteto e pintor Flávio de Carvalho (dir.), fotografados em São Paulo, em 33


DA REPORTAGEM LOCAL


Flávio de Carvalho, engenheiro, arquiteto, pintor, escritor e artista multimídia antes de o termo existir não participou da Semana de Arte Moderna em fevereiro de 1922 porque não estava no Brasil. Chegou da Europa em setembro.
Mas, mesmo sem ter sido vaiado nas escadarias do Teatro Municipal naquele fevereiro de 22, Flávio pode ser considerado não só um modernista de primeira hora, como o mais provocativo deles todos. E, ao lado de Mário, o mais psicanalítico também.
Só que, ao contrário de Mário, não era um homem discreto. Em 1931, realiza uma "experiência psicológica" em São Paulo. Consiste em enfrentar uma procissão de Corpus Christi de boné na cabeça. De acordo com o seu biógrafo, o arquiteto J. Toledo, quase foi linchado.
Em 1934, teve sua primeira exposição individual fechada pela polícia por imoralidade. Em 1939 foi preso por tomar banho nu na praça Júlio de Mesquita, no centro de São Paulo. Em 1956, saiu de saias pelas ruas de São Paulo para mostrar o que seria uma moda adequada ao clima tropical que havia pesquisado por 12 anos.

Surrealismo
A paixão de Flávio por Freud deve ter começado entre 1926 e 27, talvez como repercussão do Manifesto Surrealista lançado por Breton em 1924, em que Freud é citado. Na Europa, a psicanálise começou a entrar na arte a partir do surrealismo. A influência anterior a isso no Brasil é uma característica local.
O fato é que surrealismo e psicanálise marcariam a vida de Flávio até a morte, em 1973. "Nos últimos anos", conta Toledo, amigo de Carvalho, "Flávio lia Freud todos os dias de manhã". Toledo é autor de "Flávio de Carvalho, o Comedor de Emoções" (Unicamp/ Brasiliense, 1994).
Por coincidência, a última tela do artista, completada dias antes da morte, é um retrato do psicanalista inglês Wilfred Bion.
Bion, que ao lado de Donald W. Winnicott forma a dupla de psicanalistas mais importantes na geração que se segue a Melanie Klein, visitou o Brasil na década de 70 e encontrou-se com Flávio. Foi levado por um amigo comum, o psicanalista inglês Frank Philips, que clinicava no Brasil e havia encomendado a Flávio dois retratos de Bion.
Flávio morava em uma fazenda em Valinhos (SP), perto de Campinas, numa casa projetada por ele mesmo. De um encontro com Philips e outros amigos na fazenda, já no final da vida, restou um relato escrito, no qual ele reafirma a ligação entre o surrealismo e a psicanálise que o influenciava desde os anos 20: "O surrealismo faz parte da essência, tanto do ego como do id... O material colhido nos sonhos se apresenta com feições e estruturas surrealistas", escreve Flávio.
Sob influência da psicanálise, Flávio "renovou a arte do retrato no Brasil", diz Toledo. Ele começou a fazer "retratos psicológicos". O de Mário de Andrade (veja à pág. E 6) é "o mais perturbador e o mais belo de todos os que foram feitos do escritor", afirma a professora de estética Gilda de Mello e Souza, da Universidade de São Paulo.

Movimento Antropofágico
Embora apreciado por Mário, a grande ligação de Flávio seria com Oswald. O pintor foi um grande militante do Movimento Antropofágico, lançado por Oswald em 1928. E a ligação de ambos passava por Freud.
No "Manifesto Antropófago", Oswald cita Freud três vezes. Logo de entrada, afirma: "Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa".
O partido oswaldiano teria em Flávio um militante pertinaz e freudiano a partir de 1929. A primeira contribuição de Flávio é um texto inédito denominado "Brasil/Freud".
Em julho de 1930, uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, não muito simpática à filosofia antropofágica, dá conta da conferência "A Antropofagia no Século 20", pronunciada por Flávio em Belo Horizonte.
"Em toda a conferência, que agradou, mas não convenceu, não se ouviu uma palavra sobre arquitetura. Recalque... Sublimação... Pesquisa... rendimento máximo... Homem nu... Romantismo... Esta última palavra convém ao sr. Flávio de Carvalho e ao credo estético e filosófico que o engenheiro paulista defende com uma tão adorável ingenuidade", escreve Drummond.
Tal como Drummond, Manuel Bandeira participa de maneira mais discreta (como, aliás, é típico dos intelectuais ligados a Mário de Andrade) do credo psicanalítico. "No entanto, ele relata ter tido aulas de psicanálise no Rio, com o psicólogo polonês Waclaw Radecky", conta o crítico de arte Olívio Tavares de Araújo, um dos curadores da mostra do Masp.
A mesma influência discreta de Freud aparece em outros pintores que estarão na mostra, como Ismael Nery, Tarsila do Amaral e Cícero Dias. "A importância deles está em ter deixado, no interior do modernismo, fluir o inconsciente, provavelmente por influência também do surrealismo", diz Olívio. A seção de artes plásticas trará também artistas contemporâneos, como Farnese de Andrade, nos quais o impacto da psicanálise é mais evidente.

Encontro frustrado
Em todo caso, nada semelhante ao envolvimento que Flávio de Carvalho teve com o assunto, a ponto de viajar a Viena, em 1936, para encontrar-se com Freud. O encontro teria chegado a ser agendado, mas Freud acabou indo tirar férias nas montanhas.
Flávio ficou decepcionadíssimo. "A grande perda", diz Toledo, "é que ele faria um lindo retrato de Freud". (ANDRÉ SINGER)


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