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"ENTRE A PROSA E A POESIA"
Obra de Cristovão Tezza analisa Bakhtin sob a luz do estudo científico da literatura
Tese nos vacina contra a desmesura formalista
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA
A pergunta por aquilo que
define a poesia da prosa não
é ocupação bizantina de uma crítica literária com mania taxonômica, vocacionada para Instituto
de Pesos e Medidas, nem ingenuidade bruta de algum Monsieur
Jourdain redivivo. Por mais que a
moderna ruptura de gêneros tenha fermentado uma criativa
confusão em torno do assunto,
poesia e prosa são conceitos que
ainda ordenam nosso repertório
de leituras, orientam nossas escolhas, armam ou desarmam nossas
expectativas. Mas falar de prosa e
poesia como noções estanques e
essencializadas, enobrecidas pela
antiguidade do uso, não se sustenta. Uma contínua revisão crítica faz-se necessária.
Romancista catarinense radicado em Curitiba, professor de linguística na Universidade Federal
do Paraná, Cristovão Tezza fez de
"Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin
e o Formalismo Russo", originalmente sua tese de doutorado, defendida na USP em 2002, uma
tentativa respeitável de aproximar-se do vespeiro teórico de um
ponto de vista original: o que teria
a acrescentar a este debate a obra
de Mikhail Bakhtin (1895-1975),
reconhecidamente um dos grandes pensadores do romance no
século passado, mas que muito
pouco escreveu sobre a lírica?
Contra o pano de fundo de uma
imagem mítica do fenômeno poético (linguagem extraviada, pura,
inutensílio), recomposta a partir
da compreensão manifesta que
poetas-críticos como Valéry,
Eliot, Pound ou Paz têm de seu
ofício, é esta questão que orienta
Tezza em seu ensaio.
A obra bakhtiniana paga o preço de seu brilho excepcional e das
circunstâncias atravessadas de
sua divulgação no Ocidente, sob o
peso da censura soviética, e perturbada pelo sucesso estrondoso
de seus livros sobre Dostoiévski e
Rabelais. Polifonia, dialogismo e
carnavalização foram convertidos
em conceitos abstratos, ferramentas críticas instrumentais,
aplicáveis a torto e a direito. Desta
leitura seletiva e pragmática resulta sua assimilação equívoca, como mostra Tezza, aos teóricos do
formalismo russo e a dificuldade
de apreensão de uma dimensão
filosófica, mesmo que apenas esboçada, de seu projeto intelectual
para além da crítica literária e da
linguística.
Não é dos menores méritos do
livro apresentar, didaticamente,
os meandros deste complexo edifício teórico que resumimos sob o
rótulo Bakhtin, incluindo publicação tardia de textos programáticos (quase meio século depois
de concebidos), a colaboração estreita com Valentin Voloshinov e
Pavel Medvedev (a ponto da incerteza da verdadeira autoria de
livros assinados por ambos, possíveis disfarces do autor), que
constituíram seu círculo próximo. O caminho escolhido é um
confronto com as posições teóricas dos formalistas de Moscou e
São Petersburgo em busca de tornar mais "científico" o estudo da
literatura, posições reconstruídas
no estudo com igual cuidado de
contextualização (ao lado de
quem e contra quem se afirmam
essas idéias).
Tezza esmiuça a ótica formalista, discutindo conceitos-chave como o estranhamento ou princípio
de oposição fundamental entre a
língua corrente (prosaica) e a linguagem poética, esteticamente
carregada, o lugar do paralelismo
na poesia, sublinhando o que parece ser a consequência involuntária do inegável ganho representado pela investigação da obra de
arte como organismo autônomo,
estrutura que se pode conhecer
em seu funcionamento.
É justamente a perspectiva
bakhtiniana que aqui põe a nu esta insuficiência, apontando sua
desconsideração de aspectos essenciais no fenômeno literário,
quais sejam, sua natureza valorativa, uma dimensão histórica inalienável e, o mais importante, sua
vocação dialógica de berço, orientada para o encontro de múltiplos
sujeitos historicamente determinados. O reparo não é pequeno e
dele se seguem muitas derivações.
Tomando poesia e prosa como
polaridades que admitem infinitas combinações entre os extremos, Bakhtin procurará demonstrar que a linguagem poética tende a uma centralização monológica do discurso, construindo-se
como a afirmação unitária, não
apenas do ponto de vista estilístico, mas da afirmação de um único
centro de valores, ao contrário da
prosa. A hipótese abre caminho
para pensarmos o namoro da
poesia contemporânea com o
prosaico em quadro mais amplo,
por exemplo, mas, antes de mais
nada, nos vacina contra a desmesura formalista nos estudos literários, coisa que este ensaio faz com
clareza e elegância.
Fábio de Souza Andrade, 37, é professor de teoria literária na USP, autor de
"Samuel Beckett - O Silêncio Possível"
(Ateliê)
Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo
Autor: Cristovão Tezza
Editora: Rocco
Quanto: R$ 35 (320 págs.)
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