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MARCELO COELHO
Um objeto de consumo irresistível
Com muitos fogos de artifício, a
BMG Classics/Philips lançou no
mercado uma série de 200 CDs
dedicada aos "Grandes Pianistas
do Século". Cada pianista aparece
num livrinho em tons de ouro,
preto e café, contendo dois CDs,
ao preço de quase R$ 60.
Para quem gosta de música
clássica, trata-se de um objeto de
consumo irresistível. Aparecem
nomes estranhos, pianistas de
quem eu nunca tinha ouvido falar: Vladimir Sofronitsky, por
exemplo, ou o duo Lyubov Bruk e
Mark Taimanov e, para trégua
das consoantes eslavas, o americano Earl Wild.
Somem-se a esses nomes os legendários virtuoses de 1920, 1930,
1940: Josef Lhevinne, Ignaz Friedmann, Leopold Godowsky, Benno
Moisewitsch.
Quantos nomes! Quantos gênios! Quantas lendas! Outro gênio, agora no campo da filosofia
(a saber, Ludwig Wittgenstein),
fez uma observação curiosa: no
fundo, todo grande pianista "tem
nome de pianista"; assim como
todo grande violinista evoca, nos
fonemas do nome próprio, os sons
do instrumento.
Que nome mais apropriado para um violinista do que o retesado
som de Joseph Szigeti? Ou o dourado triunfal de Jascha Heifetz, o
pungente ré menor de Yehudi Menuhin? No campo pianístico, encontramos bemóis trabalhados no
nome Brailowski, uma polonaise
de marfim em Paderewski. Ouvimos os pedais enfáticos de Horowitz e os glissandi aveludados e
cromáticos de Lhevinne.
Mas deixemos de lado essa fantasia nominalista, que era, pensando bem, a especialidade de
Wittgenstein, um místico da empiria, um esperançoso da convenção.
A série da BMG sobre os grandes pianistas pode ser justa ou injusta -Guiomar Novaes ficou de
fora-, e é certamente uma jogada de marketing. Seja como for,
estamos num mundo em que, se
toda informação vira marketing,
pelo menos há a contrapartida de
todo marketing virar informação.
Assim, eu nunca tinha ouvido
falar de Sofronitsky: comprei o
disco. Ou de Earl Wild: comprei o
disco. Ou do duo Bruk-Taimanov.
Comprei também.
Acho que há duas espécies de
pianistas: o artista e o virtuose.
Definindo melhor: há os que chamam a atenção para a música e
os que chamam a atenção para o
quanto tocam bem a música que
há a ser tocada.
Na primeira categoria, mais discreta, mais ascética, estão pianistas como Clara Haskil, Wilhelm
Kempff, Myra Hess, Dinu Lipatti.
Na outra -a dos feéricos, dos circenses, dos fenômenos neurológicos- estão Earl Wild, Jorge Bolet,
Godowsky.
É evidente que, na frase acima,
estou diminuindo o mérito dos
virtuoses. Teriam sido apenas astros do mecanismo digital. Costumam tocar peças horrorosas: a
fantasia de Thalberg sobre o "Don
Pasquale" de Donizetti, os arabescos de Schulz-Evler sobre o "Danúbio Azul", abandonam a música em benefício da aflição técnica.
Mas há uma maneira de entender melhor esses pesadelos em semifusas: trata-se de outra arte,
não mais a arte da música, mas a
arte do piano. Algo extraordinário, não no sentido da exibição
técnica, mas da transcendência,
ocorre ali. O impossível acontece;
o piano vira outra coisa, a mão
humana se supera, surge um
"sem-sentido" no prazer, que merece, apesar do mau gosto, ser
chamado de arte.
Além disso, cabe observar que,
desde Franz Liszt, o virtuosismo
circense teve um efeito importante na evolução da música. Pois interrompe, para fins de exibição, o
discurso tonal, lógico, discreto, do
classicismo. A "cadenza", nos concertos do século 18 e 19 -parte em
que a música parava para dar azo
às exibições do solista-, foi origem tanto do cretinismo do virtuose de feira quanto da liberdade
harmônica dos grandes compositores do século 20.
Essa contradição, que faz de
Liszt uma figura ambígua e ácida
até hoje, foi resolvida por Chopin,
de quem se celebram, nestes dias,
os 150 anos da morte.
Ele soube fazer do virtuosismo
técnico uma espécie de senha para
a musicalidade pura. Cada estudo de Chopin explora a dificuldade do piano sem parecer que está
atento à dificuldade. Chopin é um
lírico da técnica, assim como
Wittgenstein foi um místico da
objetividade.
Tudo pode ser entendido sob
uma clave sociológica. Mais do
que qualquer outro instrumento,
o piano é uma máquina; ignora o
sopro, o pescoço, a garganta do
musicista. Aparentado mais com
o tablado de um tecelão, com o teclado de um tipógrafo, do que a
um prolongamento vocal do corpo humano, o piano tornou-se
um ponto de encontro entre a objetividade maquinal do século 19
e a subjetividade liberal do mesmo século 19. Chopin sintetizou as
duas coisas.
O ouvinte que traçar uma linha
que vai de Chopin a Scriabin, e de
Scriabin a Rachmaninov, pode
perfeitamente abandonar os critérios do gosto artístico para entregar-se ao que é "arte pianística", em oposição à "arte musical".
Mas Chopin se abre igualmente
aos artistas e aos virtuoses. Ele se
mostra como técnico e como poeta ao mesmo tempo. Foi essa a sua
genialidade, essa a sua modernidade.
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