São Paulo, Quarta-feira, 20 de Outubro de 1999
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MARCELO COELHO
Um objeto de consumo irresistível

Com muitos fogos de artifício, a BMG Classics/Philips lançou no mercado uma série de 200 CDs dedicada aos "Grandes Pianistas do Século". Cada pianista aparece num livrinho em tons de ouro, preto e café, contendo dois CDs, ao preço de quase R$ 60.
Para quem gosta de música clássica, trata-se de um objeto de consumo irresistível. Aparecem nomes estranhos, pianistas de quem eu nunca tinha ouvido falar: Vladimir Sofronitsky, por exemplo, ou o duo Lyubov Bruk e Mark Taimanov e, para trégua das consoantes eslavas, o americano Earl Wild.
Somem-se a esses nomes os legendários virtuoses de 1920, 1930, 1940: Josef Lhevinne, Ignaz Friedmann, Leopold Godowsky, Benno Moisewitsch.
Quantos nomes! Quantos gênios! Quantas lendas! Outro gênio, agora no campo da filosofia (a saber, Ludwig Wittgenstein), fez uma observação curiosa: no fundo, todo grande pianista "tem nome de pianista"; assim como todo grande violinista evoca, nos fonemas do nome próprio, os sons do instrumento.
Que nome mais apropriado para um violinista do que o retesado som de Joseph Szigeti? Ou o dourado triunfal de Jascha Heifetz, o pungente ré menor de Yehudi Menuhin? No campo pianístico, encontramos bemóis trabalhados no nome Brailowski, uma polonaise de marfim em Paderewski. Ouvimos os pedais enfáticos de Horowitz e os glissandi aveludados e cromáticos de Lhevinne.
Mas deixemos de lado essa fantasia nominalista, que era, pensando bem, a especialidade de Wittgenstein, um místico da empiria, um esperançoso da convenção.
A série da BMG sobre os grandes pianistas pode ser justa ou injusta -Guiomar Novaes ficou de fora-, e é certamente uma jogada de marketing. Seja como for, estamos num mundo em que, se toda informação vira marketing, pelo menos há a contrapartida de todo marketing virar informação.
Assim, eu nunca tinha ouvido falar de Sofronitsky: comprei o disco. Ou de Earl Wild: comprei o disco. Ou do duo Bruk-Taimanov. Comprei também.
Acho que há duas espécies de pianistas: o artista e o virtuose. Definindo melhor: há os que chamam a atenção para a música e os que chamam a atenção para o quanto tocam bem a música que há a ser tocada.
Na primeira categoria, mais discreta, mais ascética, estão pianistas como Clara Haskil, Wilhelm Kempff, Myra Hess, Dinu Lipatti. Na outra -a dos feéricos, dos circenses, dos fenômenos neurológicos- estão Earl Wild, Jorge Bolet, Godowsky.
É evidente que, na frase acima, estou diminuindo o mérito dos virtuoses. Teriam sido apenas astros do mecanismo digital. Costumam tocar peças horrorosas: a fantasia de Thalberg sobre o "Don Pasquale" de Donizetti, os arabescos de Schulz-Evler sobre o "Danúbio Azul", abandonam a música em benefício da aflição técnica.
Mas há uma maneira de entender melhor esses pesadelos em semifusas: trata-se de outra arte, não mais a arte da música, mas a arte do piano. Algo extraordinário, não no sentido da exibição técnica, mas da transcendência, ocorre ali. O impossível acontece; o piano vira outra coisa, a mão humana se supera, surge um "sem-sentido" no prazer, que merece, apesar do mau gosto, ser chamado de arte.
Além disso, cabe observar que, desde Franz Liszt, o virtuosismo circense teve um efeito importante na evolução da música. Pois interrompe, para fins de exibição, o discurso tonal, lógico, discreto, do classicismo. A "cadenza", nos concertos do século 18 e 19 -parte em que a música parava para dar azo às exibições do solista-, foi origem tanto do cretinismo do virtuose de feira quanto da liberdade harmônica dos grandes compositores do século 20.
Essa contradição, que faz de Liszt uma figura ambígua e ácida até hoje, foi resolvida por Chopin, de quem se celebram, nestes dias, os 150 anos da morte.
Ele soube fazer do virtuosismo técnico uma espécie de senha para a musicalidade pura. Cada estudo de Chopin explora a dificuldade do piano sem parecer que está atento à dificuldade. Chopin é um lírico da técnica, assim como Wittgenstein foi um místico da objetividade.
Tudo pode ser entendido sob uma clave sociológica. Mais do que qualquer outro instrumento, o piano é uma máquina; ignora o sopro, o pescoço, a garganta do musicista. Aparentado mais com o tablado de um tecelão, com o teclado de um tipógrafo, do que a um prolongamento vocal do corpo humano, o piano tornou-se um ponto de encontro entre a objetividade maquinal do século 19 e a subjetividade liberal do mesmo século 19. Chopin sintetizou as duas coisas.
O ouvinte que traçar uma linha que vai de Chopin a Scriabin, e de Scriabin a Rachmaninov, pode perfeitamente abandonar os critérios do gosto artístico para entregar-se ao que é "arte pianística", em oposição à "arte musical". Mas Chopin se abre igualmente aos artistas e aos virtuoses. Ele se mostra como técnico e como poeta ao mesmo tempo. Foi essa a sua genialidade, essa a sua modernidade.


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