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Crítica/"Ariel"
Edição mostra Sylvia Plath sem cortes
Lançamento traz os originais da coletânea "Ariel", datilografados pela poeta, sem supressões e inclusões do marido Ted Hughes
IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Graças às revelações da
crítica Marjorie Perloff, os cultores de
Sylvia Plath já sabiam, desde
1990, que o livro, publicado em
1965 pelo marido Ted Hughes
sob o título "Ariel", não era exatamente a reprodução dos originais datilografados que a autora deixara sobre a escrivaninha, em 1963, quando se suicidou aspirando gás de cozinha.
Os poemas tinham sido remanejados por Ted, que os submetera a cortes e inclusões, para
-segundo ele- "fazer do livro
o melhor que pudesse" e, ao
mesmo tempo, "defender a memória da mãe de seus filhos e de
pessoas vivas, além da própria
reputação".
Alguns dos poemas suprimidos deixavam à mostra a grande amargura de Sylvia com a
traição do marido, que a abandonou por Assia Wevill, com
quem ele teve uma filha. Esse
ato de suposto escamoteio dos
indícios de uma possível culpa
fez com que a corrente feminista norte-americana o atacasse
furiosamente, atribuindo-lhe a
morte da esposa por indução ao
suicídio (a palavra "assassinato" foi mesmo utilizada). Via-se
nele apenas o poeta inglês conquistador que teve inúmeros
casos com suas colegas e alunas
do Pembroke College, em Cambridge, onde conheceu e se casou com Sylvia, que ali fora estudar graças a uma bolsa da
Fundação Fullbright.
Essa fúria feminista agravou-se ainda mais quando, seis anos
após a morte de Sylvia, a "outra" igualmente se suicidou
com gás, depois de matar a filha
Shura, que tivera de Hughes. À
parte essa acusação pública de
mau-caratismo, Ted era considerado pela crítica como o mais
importante poeta inglês do século 20, e guardou o título de
Poeta Laureado da Inglaterra
de 1984 até sua morte, em 1988.
Pouco antes de morrer, publicou uma coletânea de poemas,
"Cartas de Aniversário" (ed.
Record), em que relata seu relacionamento com Sylvia, desde
o encontro inicial em Cambridge até a separação, conseguindo
com isto granjear alguma simpatia em relação ao seu comportamento conjugal.
Originais verdadeiros
Contudo, foi só em 2004 que
os mesmos cultores plathianos
puderam ter acesso aos verdadeiros originais de "Ariel", na
ordem estabelecida por Sylvia,
sem cortes nem substituições.
A filha do casal, Frieda Hughes,
deu a público uma edição fac-similada dos originais cuidadosamente datilografados pela
própria Sylvia, com todas as
emendas à mão feitas por ela. O
título original era inicialmente
"Rival" (rival), emendado para
"A Birthday Present" (um presente de aniversário), depois
para "Daddy" (papai), para fixar-se finalmente em "Ariel",
que, nas próprias indicações
um tanto despistadoras fornecidas por Sylvia à BBC numa
entrevista de 1962, tanto podia
significar o personagem shakespeariano de "A Tempestade" quanto o nome de um cavalo de sua predileção.
Nesse prefácio, a filha Frieda,
embora defendendo a integridade da obra materna, escusa o
pai de ter desfigurado o livro,
informando que ele fizera uma
leitura crítica dos originais, retirado 13 poemas e os substituindo por trabalhos mais recentes e expressivos que Sylvia
compusera nas últimas semanas antes de morrer. E Frieda
ataca frontalmente os que acusaram Ted de ter agido em causa própria, dizendo: "Meu pai
tinha profundo respeito pela
obra de minha mãe, apesar de
ter sido um dos alvos da fúria
dela. A obra era tudo para ele,
que via o cuidado com ela como
uma forma de homenagem e
uma responsabilidade".
Destoando do coro da crítica
feminista anti-Hughes, a criteriosa Meghan O'Rourke publicou, logo após o aparecimento
da edição fac-similada de 2004,
um artigo em que analisa as alterações introduzidas por Ted,
concluindo, com argumentos
convincentes, que a versão dele
"é de fato superior à de Plath
-e que a própria [autora] teria
ficado satisfeita com ela". Essa
opinião, no entanto, não é incontestável.
Saindo agora a edição brasileira de "Ariel", vê-se que foi
conservada a reprodução fac-similar dos originais datilografados de Sylvia Plath, vis-à-vis
da tradução dos versos feita por
Rodrigo Garcia Lopes e Maria
Cristina Lenz de Macedo. Embora não esteja esclarecido o
método utilizado pelos tradutores -uma espécie de execução musical seja a dois pianos
ou a quatro mãos- a qualidade
do trabalho de transposição (no
livro mencionada como "transcriação") merece ser destacada,
tendo em vista a riqueza vocabular, os efeitos guturais, sonoros, dessa poesia que, segundo a
própria autora, ganhava intensidade ao ser lida em voz alta.
Quem ouviu a gravação em
cassete "The Poet Speaks"
-em que T. S. Eliot lê um dos
poemas humorísticos de "Os
Gatos"- lembra-se da voz esganiçada e quase histérica de
Sylvia dizendo "Daddy", dedicado ao pai entomologista
"prussiano", Otto Plath, que ela
perdeu aos oito anos e de cuja
lembrança jamais conseguiu libertar-se, tanto assim que cogitou de dar a este seu livro o título do poema. Seu temperamento irritadiço e neurótico levava-a a constantes crises de depressão, mas foi sobretudo a ruptura com Ted que a fez escrever
alguns de seus melhores versos,
amargos e espinhosos, estrategicamente subtraídos por ele
em sua edição de "Ariel".
A poesia de Sylvia é hermética, desnorteante às vezes, com
o leitor sem saber o significado
ou a intenção dos versos, mas
sempre construída com um vocabulário de riqueza léxica incomparável, bem diversa da
poesia do marido que, pelo menos nas "Cartas de Aniversário", assume um tom narrativo,
facilmente decodificável.
IVO BARROSO é poeta, crítico e tradutor, autor
de "A Caça Virtual" (ed. Record)
ARIEL
Autora: Sylvia Plath
Tradução: Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo
Editora: Verus
Quanto: R$ 34,90 (210 págs.)
Avaliação: ótimo
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