São Paulo, terça, 20 de outubro de 1998

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O Brasil vai viver um flashback de si mesmo

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Afinal, quem somos nós? Já fomos o Brasil-vítima da ditadura, o Brasil-Diretas Já, o Brasil-Sarney, o Brasil-Collor, o Brasil-Real, o Brasil-global; agora seremos o Brasil-FMI, de novo. Nossa identidade flutua, aparece e some na esquina. "Tudo é Brasil", diz o filme de Rogério Sganzerla, o grande cineasta que vive obcecado em descobrir que mistério se oculta em nosso passado. Iremos da "barbárie à decadência, sem conhecer a civilização"? Talvez a verdade estivesse patente ali nas imagens do passado que Orson Welles filmou a cores em 1942, no "It's All True" (Tudo é Verdade), as únicas imagens a cores desta época, que Sganzerla pesquisa.
O filósofo Henri Bergson falou, ao ver o cinema pela primeira vez: "O cinematógrafo é importante para que se saiba, no futuro, como se moviam os antigos". Já falei disso num artigo de cinco anos atrás, mas repito hoje, já que, brevemente, teremos uma nova crise de identidade.
Em 1982, estou numa festa no Beverly Hilton, em Hollywood. Vem andando em minha direção o Orson Welles. Eu não aguento e dou uma de tiete. Estendo a mão para o grande gordo que vinha se arrastando e digo: "Eu sou brasileiro! Nós amamos o senhor". Orson Welles não parou, mas deu-me a mão, dizendo em português: "Muito prazer... How is Grande Otelo?..." Na hora, eu me lembrei da frase de Bergson, pois vi que ali, na memória de Welles, moviam-se os brasileiros da época em que eu nasci.
² Tempo dos índios
Tempos depois, voei à Dinamarca, onde vi um filme chamado "Tigrero" do Mika Kaurismaki, que é um documentário incrível sobre um outro filme, do grande Samuel Fuller, que nunca foi feito, em 1951, aqui no Brasil, no Mato Grosso. Ia ser uma história de amor tipo "Mogambo", mas não rolou. Contudo, o Fuller esteve aqui e filmou os índios de uma aldeia carajá em 16 mm a cores. Muito bem. O Mika veio aqui em 92 com o Fuller e projetou as imagens coloridas para os índios daquela aldeia, 40 anos depois; e filmou, hoje, as reações da aldeia, se vendo. É espantoso. Cinema em estado puro: os índios que não conheciam o cinema, vendo-se a si mesmos, como crianças no passado, viúvas vendo maridos jovens, avós redivivos, um verdadeiro milagre de ressurreição. Era um desses momentos em que a arte fura a metáfora e toca o Real. Os índios espectadores de hoje estavam descobrindo o tempo.
Muito bem. Volto ao Brasil quando estava sendo lançado o "Tudo é Verdade", uma remontagem das cenas feitas por Orson Welles em 1942. Corro ao cinema em busca de mim mesmo, querendo ver as imagens coloridas do carnaval de 1942, como um índio de Fuller. Queria ver algo que nos "explicasse". Meu choque foi total. Pois descobri que há três "tempos".
² Tempo da miséria
Nos fragmentos do filme de Welles, vi o "tempo" dos jangadeiros cearenses em sua miserável epopéia até o Rio, para pedir ajuda a Getúlio. E vi o Carnaval da classe média e a dança oficial dos políticos urbanos. Vi como se moviam estes brasileiros de 50 anos atrás.
Meu primeiro choque foi que, no filme dos índios, o "presente" deles parecia ser "antes", parecia estar nas cenas de 1951 a que eles assistiram enlevados. Naquela aldeia de 1951, havia uma espantosa sincronia entre a natureza e os homens, de quem os índios-espectadores de hoje, de calção e relógio, pareciam antepassados. Filmada nos mesmos ângulos, hoje, aquela aldeia parece uma decadência de um passado que era o "presente". Lembrei-me de Bergson, já velhinho, falando do passado, no passado da França.
Vi nos índios carajás de hoje uma espécie de "decorrer", um "devir" que antes não havia. Hoje, dentro do tempo, os índios carajás estão em trânsito entre algo que foram e algo que jamais serão. Há em seus rostos de agora um traço novo: o sofrimento. Antes, não havia. Hoje, eles têm fome de algo que não está ali. O tempo foi uma doença que passamos a eles. A miséria chegou como um torto progresso.
E estes índios de hoje ficaram estranhamente iguais a um outro tempo, visto no filme de Welles de 1942: o tempo dos pescadores miseráveis do Ceará. Como os pescadores de ontem e de hoje, os índios são agora também carentes de um "futuro" de que antes não precisavam. Já os pescadores no filme de Welles não viviam em nenhum "passado". Eram exatamente iguais ao que são hoje, 50 anos depois: os mesmos rostos tristes, o mesmo sofrimento que os índios contrairiam como uma doença incurável. Miséria é miséria em qualquer tempo.
² Tempo das ilusões
E eu vi no filme de Welles o terceiro "tempo": o tempo dos políticos de 1942, o clã de Getúlio, os bailes de carnaval coloridos, o cais do porto em festa recebendo os jangadeiros miseráveis e heróicos, a narração retumbante e demagógica dos noticiários do Departamento de Propaganda do Estado Novo. E este foi o terceiro choque. Além da dolorosa nostalgia de ver nosso misterioso país em cores há 55 anos atrás, fica claro que nossa realidade urbana da época não mostrava (ao contrário dos índios) uma grandeza ou integridade perdida, mas uma fragilidade indefesa diante das câmeras de Welles. Dá para ver, nos corpinhos dançantes dos anos 40, o culto a uma "malemolência" carioca, o molejo molenga dos burocratas da então capital federal, os gestos de uma malandragem fácil, um individualismo rasteiro e, mais que isso, a evidência de que, em 1942, eles (nós) já estavam "aquém de um presente". Os índios tinham um "presente" no passado. Os jangadeiros estão aprisionados num presente eterno de miséria. A classe média de 1942, povo e políticos pareciam estar "aquém" de um presente; já faltava algo ali naquele passado.
Vendo os filmes americanos dos anos 30 e 40, não sentimos falta de nada. Com suas geladeiras brancas e seus telefones pretos, tudo funcionava. Estavam sincronizados com o tempo. O "hoje" deles é apenas uma decorrência daqueles anos em preto e branco. Para os americanos, o passado estava de acordo com sua época. Já o nosso passado estava "atrás" daquele tempo. Nos poucos filmes de época que temos, passa-se a sensação de que todos morreram sem conhecer seus melhores dias. Mesmo os filmes de ficção são um documentário da forte carência nos rostos e corpos das pessoas. A ilusão, a ignorância, a dependência são visíveis naqueles sambas coloridos de um Carnaval sem som, com pobres baianinhas de tímidos meneios, o corso, o confete, a praia de Copacabana com galãs imitando Clark Gable e Grande Otelo fazendo sua boca de chupeta colonial. Olhando nosso passado, vemos como somos atrasados no presente.
Lembro-me dos olhos de Orson Welles quando lhe disse do Brasil e vi que, num segundo, ele se lembrara em cores do vazio tempo brasileiro em que eu nasci e que ele entendeu antes de nós. Como os mortos do passado, talvez não conheçamos nunca um presente. No futuro, não acreditaremos que fomos hoje assim. O atraso cria a mística de que um dia "algo" virá. Ser subdesenvolvido não é não ter futuro; é não estar nunca no presente. Tudo isso fica mais doloroso agora, quando talvez sejamos jogados de volta ao passado.



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