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O Brasil vai viver um flashback de si mesmo
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
Afinal, quem somos nós? Já
fomos o Brasil-vítima da ditadura, o Brasil-Diretas Já, o Brasil-Sarney, o Brasil-Collor, o
Brasil-Real, o Brasil-global;
agora seremos o Brasil-FMI, de
novo. Nossa identidade flutua,
aparece e some na esquina.
"Tudo é Brasil", diz o filme de
Rogério Sganzerla, o grande cineasta que vive obcecado em
descobrir que mistério se oculta
em nosso passado. Iremos da
"barbárie à decadência, sem conhecer a civilização"? Talvez a
verdade estivesse patente ali
nas imagens do passado que
Orson Welles filmou a cores em
1942, no "It's All True" (Tudo é
Verdade), as únicas imagens a
cores desta época, que Sganzerla pesquisa.
O filósofo Henri Bergson falou, ao ver o cinema pela primeira vez: "O cinematógrafo é
importante para que se saiba,
no futuro, como se moviam os
antigos". Já falei disso num artigo de cinco anos atrás, mas repito hoje, já que, brevemente,
teremos uma nova crise de
identidade.
Em 1982, estou numa festa no
Beverly Hilton, em Hollywood.
Vem andando em minha direção o Orson Welles. Eu não
aguento e dou uma de tiete. Estendo a mão para o grande gordo que vinha se arrastando e
digo: "Eu sou brasileiro! Nós
amamos o senhor". Orson Welles não parou, mas deu-me a
mão, dizendo em português:
"Muito prazer... How is Grande
Otelo?..." Na hora, eu me lembrei da frase de Bergson, pois vi
que ali, na memória de Welles,
moviam-se os brasileiros da
época em que eu nasci.
²
Tempo dos índios
Tempos depois, voei à Dinamarca, onde vi um filme chamado "Tigrero" do Mika Kaurismaki, que é um documentário incrível sobre um outro filme, do grande Samuel Fuller,
que nunca foi feito, em 1951,
aqui no Brasil, no Mato Grosso.
Ia ser uma história de amor tipo "Mogambo", mas não rolou.
Contudo, o Fuller esteve aqui e
filmou os índios de uma aldeia
carajá em 16 mm a cores. Muito
bem. O Mika veio aqui em 92
com o Fuller e projetou as imagens coloridas para os índios
daquela aldeia, 40 anos depois;
e filmou, hoje, as reações da aldeia, se vendo. É espantoso. Cinema em estado puro: os índios
que não conheciam o cinema,
vendo-se a si mesmos, como
crianças no passado, viúvas
vendo maridos jovens, avós redivivos, um verdadeiro milagre
de ressurreição. Era um desses
momentos em que a arte fura a
metáfora e toca o Real. Os índios espectadores de hoje estavam descobrindo o tempo.
Muito bem. Volto ao Brasil
quando estava sendo lançado o
"Tudo é Verdade", uma remontagem das cenas feitas por Orson Welles em 1942. Corro ao
cinema em busca de mim mesmo, querendo ver as imagens
coloridas do carnaval de 1942,
como um índio de Fuller. Queria ver algo que nos "explicasse". Meu choque foi total. Pois
descobri que há três "tempos".
²
Tempo da miséria
Nos fragmentos do filme de
Welles, vi o "tempo" dos jangadeiros cearenses em sua miserável epopéia até o Rio, para pedir ajuda a Getúlio. E vi o Carnaval da classe média e a dança
oficial dos políticos urbanos. Vi
como se moviam estes brasileiros de 50 anos atrás.
Meu primeiro choque foi que,
no filme dos índios, o "presente" deles parecia ser "antes",
parecia estar nas cenas de 1951
a que eles assistiram enlevados.
Naquela aldeia de 1951, havia
uma espantosa sincronia entre
a natureza e os homens, de
quem os índios-espectadores de
hoje, de calção e relógio, pareciam antepassados. Filmada
nos mesmos ângulos, hoje,
aquela aldeia parece uma decadência de um passado que era o
"presente". Lembrei-me de
Bergson, já velhinho, falando
do passado, no passado da
França.
Vi nos índios carajás de hoje
uma espécie de "decorrer", um
"devir" que antes não havia.
Hoje, dentro do tempo, os índios carajás estão em trânsito
entre algo que foram e algo que
jamais serão. Há em seus rostos
de agora um traço novo: o sofrimento. Antes, não havia. Hoje,
eles têm fome de algo que não
está ali. O tempo foi uma doença que passamos a eles. A miséria chegou como um torto progresso.
E estes índios de hoje ficaram
estranhamente iguais a um outro tempo, visto no filme de Welles de 1942: o tempo dos pescadores miseráveis do Ceará. Como os pescadores de ontem e de
hoje, os índios são agora também carentes de um "futuro" de
que antes não precisavam. Já os
pescadores no filme de Welles
não viviam em nenhum "passado". Eram exatamente iguais
ao que são hoje, 50 anos depois:
os mesmos rostos tristes, o mesmo sofrimento que os índios
contrairiam como uma doença
incurável. Miséria é miséria em
qualquer tempo.
²
Tempo das ilusões
E eu vi no filme de Welles o
terceiro "tempo": o tempo dos
políticos de 1942, o clã de Getúlio, os bailes de carnaval coloridos, o cais do porto em festa recebendo os jangadeiros miseráveis e heróicos, a narração retumbante e demagógica dos noticiários do Departamento de
Propaganda do Estado Novo. E
este foi o terceiro choque. Além
da dolorosa nostalgia de ver
nosso misterioso país em cores
há 55 anos atrás, fica claro que
nossa realidade urbana da época não mostrava (ao contrário
dos índios) uma grandeza ou
integridade perdida, mas uma
fragilidade indefesa diante das
câmeras de Welles. Dá para ver,
nos corpinhos dançantes dos
anos 40, o culto a uma "malemolência" carioca, o molejo
molenga dos burocratas da então capital federal, os gestos de
uma malandragem fácil, um
individualismo rasteiro e, mais
que isso, a evidência de que, em
1942, eles (nós) já estavam
"aquém de um presente". Os índios tinham um "presente" no
passado. Os jangadeiros estão
aprisionados num presente
eterno de miséria. A classe média de 1942, povo e políticos pareciam estar "aquém" de um
presente; já faltava algo ali naquele passado.
Vendo os filmes americanos
dos anos 30 e 40, não sentimos
falta de nada. Com suas geladeiras brancas e seus telefones
pretos, tudo funcionava. Estavam sincronizados com o tempo. O "hoje" deles é apenas uma
decorrência daqueles anos em
preto e branco. Para os americanos, o passado estava de
acordo com sua época. Já o nosso passado estava "atrás" daquele tempo. Nos poucos filmes
de época que temos, passa-se a
sensação de que todos morreram sem conhecer seus melhores dias. Mesmo os filmes de ficção são um documentário da
forte carência nos rostos e corpos das pessoas. A ilusão, a ignorância, a dependência são visíveis naqueles sambas coloridos de um Carnaval sem som,
com pobres baianinhas de tímidos meneios, o corso, o confete,
a praia de Copacabana com galãs imitando Clark Gable e
Grande Otelo fazendo sua boca
de chupeta colonial. Olhando
nosso passado, vemos como somos atrasados no presente.
Lembro-me dos olhos de Orson Welles quando lhe disse do
Brasil e vi que, num segundo,
ele se lembrara em cores do vazio tempo brasileiro em que eu
nasci e que ele entendeu antes
de nós. Como os mortos do passado, talvez não conheçamos
nunca um presente. No futuro,
não acreditaremos que fomos
hoje assim. O atraso cria a mística de que um dia "algo" virá.
Ser subdesenvolvido não é não
ter futuro; é não estar nunca no
presente. Tudo isso fica mais
doloroso agora, quando talvez
sejamos jogados de volta ao
passado.
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