São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 2002

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Documentos registram vigilância do regime militar sobre Gilberto Gil

A pasta do ministro

MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

Três grandes obsessões mobilizaram a vigilância do aparato de segurança do regime militar (1964-85) sobre o compositor Gilberto Gil: mensagens políticas das canções, comportamento sexual e drogas. Na terça-feira, Gil, 60, disse aceitar o convite para ser ministro da Cultura do governo Luiz Inácio Lula da Silva. O anúncio oficial, até a conclusão desta edição, ainda não havia sido feito.
Investigação da Folha no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro garimpou documentos das polícias políticas do Rio e de Santa Catarina e de órgãos de inteligência do Exército e da Marinha. Tudo das décadas de 1960 e 70, a maioria com carimbo de "confidencial" ou "secreto".
O que à época representava a dureza da repressão sobre a vida cultural do país hoje pode ser visto quase como peça de humor, tal o ridículo de alguns relatórios.
Em agosto de 1967, Gil foi citado pela 2ª Seção (Informações) do 1º Exército. Com o título "Infiltração no meio artístico", o informe número 419 descrevia a ação de supostos "agentes" de esquerda que cantavam na TV Record e na Rádio Jovem Pan, em São Paulo: Gil, Elis Regina, Nara Leão, Chico Buarque, Edu Lobo e Geraldo Vandré.
"A ação se desenvolve através da chamada "música de protesto", numa propaganda subliminar muito bem conduzida", analisavam os militares.
Em outubro de 1971, o CIE (Centro de Informações do Exército) alertava para o lançamento de um LP do músico encartado em um fascículo da editora do "Pasquim". "Além de difundir algumas músicas inconsequentes, possui, nos artigos de autoria de [o jornalista] Tarso de Castro, mensagens distorcidas, (...) a respeito de Gilberto Gil (...)." A seguir, orienta o recolhimento dos discos distribuídos e a "proibição da reprodução dos mesmos".
Em dezembro de 1971, o CIE pediu ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social) da Guanabara dados sobre a história de Gil e suas atividades no exterior.
O Dops anotou: o baiano era "um dos principais agentes do grupo de cantores e compositores de orientação filo-comunista. (...) Em fevereiro de 1968, Gilberto Gil divulgava nas casas de diversões noturnas (...) uma rumba denominada "Soy Loco por ti, América". (...) Faz apologia de Che Guevara e ridiculariza governantes da América Latina".
Em maio de 1972, um agente do mesmo Dops, Paulo Monteiro, mostrava frequentar certos ambientes musicais a trabalho. Pareceram-lhe tão significativos os gestos de Gil que escreveu:
"É parceiro de outro compositor brasileiro, de nome Caetano Veloso (...). Suas apresentações descambam para a disassorciação (sic) dos costumes vigentes a toda sociedade, demonstrando em público repulsa pelos atos preconizados em lei, alardeando um liberalismo pela prática do homossexualismo, tão em volga (sic) na Inglaterra, entre nós."
"Tanto que na apresentação de Caetano Veloso este, em público, fazia trejeitos, requebrava-se, deixando a desejar sua real masculinidade. Quando em dupla com Gilberto Gil, acercava-se deste, mordiscando-o no pescoço, como uma fêmea à procura do macho, faltando pouco para beijá-lo." O beijo, reportava o funcionário público, aconteceu em outro show: "(...) tendo Caetano recebido das mãos de Gilberto Gil uma rosa, dando-lhe como recompensa um beijo na boca".
O agente resumia suas impressões sobre o que fazia Gil na Europa: "Sua missão, ao que parece, é elidir o comportamento da juventude brasileira, os princípios básicos de sua formação, levando-a à devassidão, mediante incitação de costumes e hábitos alienígenas, procurando, com isso, organizar agrupamentos de ociosos, carcomidos pelo uso de tóxicos (...)."
Numerosos textos associam Gilberto Gil às drogas, num procedimento recorrente da ditadura militar: ligar o consumo delas à oposição ao regime. Em 1976, arapongas do Rio e de Santa Catarina espionaram um vôo fretado pela casa de shows Canecão. Uma decisão judicial permitira que Gil se ausentasse do tratamento "psiquiátrico" em Florianópolis imposto pela Justiça após sua prisão por alegado porte de maconha. Despacho posterior cancelou a licença. Gil fora preso no final dos anos 60 por motivos políticos. Nos 70, por causa de drogas. No hospício, compôs "Sandra". A primeira prisão já o inspirara para outro clássico, "Aquele Abraço".


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