São Paulo, quinta-feira, 21 de fevereiro de 2002

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"A LUTA SECRETA DE MARIA DA ENCARNAÇÃO"

Confuso, Brasil precisa de Guarnieri

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Antes de tudo, é preciso dizer que há muito tempo Gianfrancesco Guarnieri merece uma produção tão bem amparada quanto essa. São 38 atores, 30 músicos e 26 técnicos, bancados pelo Instituto Takano, que vem realizando um desinteressado e fecundo investimento cultural.
A saga de Maria, encarnação do povo brasileiro, conta com atores que sabem conciliar o naturalismo da interpretação a um canto afinado, sendo emblemáticas as extraordinárias atuações de Suely Franco e Vanessa Gerbelli, que unem o vigor de uma geração às melhores esperanças da geração seguinte. O programa primoroso, cartão de visitas do que há de histórico na montagem, é item obrigatório de bibliotecas.
Estabelecida a importância da presente temporada poder contar com um inédito de Gianfrancesco Guarnieri, seria menosprezo no entanto tratá-lo com condescendência. A montagem comove a platéia, mas apresenta dois erros estratégicos claros.
Primeiro, propõe-se a combater a Broadway com seus próprios meios, querendo afirmar assim a excelência do musical "nosso", que dispensaria as recentes importações. Ressalta assim, solicitando a comparação, a precariedade da sua maquinaria cênica e as entradas forçadas das canções: enquanto é estuprada, Maria canta uma canção de amor, e dançarinos são trazidos aos pares por alçapões.
Se o que se pretende é um lirismo ingênuo, acaba soando como uma paródia, voluntária ou não, em todo caso reverente ao decadente modelo que se quer devorar, como a Atlântida para Hollywood. De forma análoga, a música de Renato Teixeira, mesmo embasada no conhecimento das raízes populares, paga um tributo alto ao Edu Lobo do Arena.
Segundo, o texto acaba explicitando nas falas o que a montagem deveria mostrar em ações, deixando pouco para o espectador. A trama é um longo feedback e acerta ao misturar passado e presente, com Marias de épocas diferentes convivendo e lembranças concretizadas em fantasmas. Mas parece se arrepender da ousadia sobretudo quando cataloga imediatamente os bons e os maus.
Um personagem ambíguo como o Agenor de Ênio Gonçalves só vem à cena para discutir o passado, o que o torna desnecessário para a trama; um pouco mais redondo, o Caieiras dá mais espaço para o trabalho de Ewerton de Castro, mas acaba sucumbindo à função de vilão de melodrama.
Maria, ameaçada de cair na prostituição, redime-se virando professora, ao receber das crianças uma pasta com a inscrição "professores do Brasil", o que beira a propaganda institucional.
O maniqueísmo é inimigo do didático. A Mãe Coragem e o Galileu de Brecht mostram claramente isso. Que seja dito sem ironia: os humilhados por uma repressão sanguinária seguem humilhados, enquanto os que se beneficiaram com ela seguem impunes e no poder.
A novidade é que professores, parte da maioria que tenta manter a dignidade, são insultados por um presidente ex-resistente e ex-professor. Hoje mais confuso, o Brasil é um país infeliz que precisa de Guarnieri. Resgatado em boa hora, ele deve agora superar velhas estratégias.


A Luta Secreta de Maria da Encarnação   
Autor: Gianfrancesco Guarnieri
Direção: Marcus Vinícius Faustini
Onde: teatro Carlos Gomes (pça. Tiradentes, s/nš, centro, Rio de Janeiro, tel. 0/xx/21/ 2232-8701)
Quando: de ter. a qui., às 19h; até hoje
Quanto: R$ 10




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