UOL


São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA/ESTRÉIA

"AS CONFISSÕES DE SCHMIDT"

Para Louis Begley, autor do livro em que se baseia filme de Alexander Payne, versão é sensível

Schmidt nas telas virou jóia original

Reuters
Jack Nicholson, protagonista de "As Confissões de Schmidt", baseado em livro de Louis Begley


LOUIS BEGLEY
ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"

O filme "As Confissões de Schmidt", dirigido por Alexander Payne, é baseado no meu livro homônimo. Como já é sabido, o roteiro, de autoria de Payne e Jim Taylor, conta uma história bastante diferente da que escrevi.
Eles obrigaram meu Albert Schmidt, um advogado chique de Nova York, a deixar sua casa em Bridgehampton, Long Island, e mudar-se para Omaha, lugar em que ele, certamente, não teria colocado os pés. Lá ele passou por uma metamorfose e virou o atuário Warren Schmidt, que, depois de 30 anos trabalhando numa empresa de seguros de vida, não conseguiu grande êxito.
Depois que Payne e Taylor -temendo que eu pudesse repudiar as modificações- me fizeram assistir ao filme, eu lhes disse que teria orgulho de ter escrito o livro deles.
Dizem que sou um sujeito mal-humorado e resmungão. Por que, então, minha reação foi tão benévola? Será que eu não teria preferido que "Sobre Schmidt", meu primeiro livro a virar filme, tivesse tido uma versão cinematográfica mais fiel? A resposta à primeira pergunta é fácil. Apesar das alterações radicais impostas à trama, meus temas mais importantes foram tratados com inteligência e sensibilidade. Eles são a pavorosa solidão de Schmidt, que, acredito, dura sua vida inteira; a compreensão de que é possível estragar um relacionamento que importa mais do que qualquer outra coisa para nós -no caso, o relacionamento de Schmidt com sua filha- e a maneira como nosso preconceito contra o outro nos aprisiona.
Senti falta, por exemplo, do tema do poder redentor e regenerador do Eros, encarnado, em meu romance, por Carrie, a personagem de quem mais gosto -uma garçonete bela e aventureira com pouco mais de 20 anos de idade.
A resposta à segunda pergunta é fácil também. Admiro Jack Nicholson há tempo demais para poder pedir mais do que vê-lo recriar meu Schmidt na tela grande. Na verdade, quando Michael Besman, co-produtor de "Schmidt", o filme, estava negociando o direito de transpor meu livro para o cinema, virei massinha flexível em suas mãos assim que ele disse que queria Nicholson para o papel principal. Tivesse ele conseguido enxergar dentro de meu coração, teria percebido que, para que eu lhe concedesse os direitos de graça, bastaria ele dizer que Nicholson já tinha praticamente aceito o convite. E acabou conseguindo um preço muito baixo, pelo fato de expressar essa esperança.
A outra e mais complexa resposta à segunda pergunta diz respeito às diferenças fundamentais entre duas mídias artísticas: a literatura romanesca e o cinema.
Numa dessas coincidências estranhas que assombram os escritores de ficção, em meu novo romance, "Shipwreck", o protagonista tenta criar um roteiro a partir do livro "Daniel Deronda", de George Eliot, obra que ele e eu achamos que praticamente implora para virar filme. Mas, possivelmente pelo fato de ser escritor de romances, ele acha a tarefa difícil, e não apenas em função da necessidade de simplificar.
Meus romances são carregados de ironia, e meus personagens são atormentados por dúvidas quanto a sua própria identidade, suas motivações. Eu recorro com frequência ao diálogo interno.
Teriam Alexander Payne e Jim Taylor, por brilhantes que são, feito um trabalho igualmente bom se tivessem escrito uma adaptação fiel ao meu livro? Sendo fã deles, naturalmente tenho vontade de dizer que teriam. E estou certo de que Jack Nicholson teria se encaixado perfeitamente como o Albert Schmidt de Bridgehampton.
Mas, enquanto eu assistia a "As Confissões de Schmidt" com crescente admiração, tive consciência dos perigos. Todos nós já assistimos a adaptações fiéis de livros que amamos e rangemos os dentes porque as versões para o cinema de alguma maneira deixaram escapar o principal e distorceram ou vulgarizaram o livro. O desconforto do autor deve ser infinitamente maior.
Acabei concluindo que pode ter sido melhor para mim e para "Sobre Schmidt", o livro, que Payne tenha feito uso livre daquilo que captou de minha obra, somado a suas obsessões sobre Omaha, para criar sua história de "um sujeito comum", obra que é uma jóia cinematográfica original.


Louis Begley é autor de "Sobre Schmidt" (Companhia das Letras)

Tradução Clara Allain


Texto Anterior: Ruído: Gravadoras se movem com pop-black-rock
Próximo Texto: Crítica: Força dos diálogos torna filme memorável
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.