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MÚSICA ERUDITA
Perlman faz concerto perfeito e tedioso
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
Imagine um músico que domina completamente o seu
instrumento. Domina a música
com a habilidade de quem fala
sua língua materna e tem prazer de falar. Não há fácil ou difícil, nesse estado: só o prazer
das coisas simples e outro prazer, de uma vertigem das notas, um artesanato voluptuoso
dos dedos e da imaginação.
Agora imagine esse mesmo
músico chegado a um ponto tal
que a própria música parece
pequena para tanta destreza. A
experiência e a confiança desse
músico são tão grandes que tudo, agora, parece revisitado; a
espontaneidade desaparece e a
música, mais que compreendida, soa amestrada, vazia.
Essa poderia ser a trama de
um conto de Henry James, ou
de um poema de Robert Browning. Mas é só a sugestão, em
tons romanescos, da experiência de ouvir o violinista Itzhak
Perlman, em seu concerto de
terça-feira, no teatro Alfa Real.
Seria injusto não falar bem de
um músico como Perlman, capaz de executar proezas virtuosísticas, como o perpetuum mobile da "Sonata" de Ravel, assim como outras façanhas, menos vistosas, mas mais difíceis
ainda, como sustentar a tensão
das linhas em César Franck, ou
entrar de cheio no tom de bravura melancólica de Brahms, ou
de costurar no ar as linhas de semicolcheias de Mozart.
Mas tanta proeza e tanto domínio acabaram resultando
num concerto oco. A perfeição
do corpo da música não garante
a sua expressão; e a coincidência
entre notas e significado, uma
coincidência consigo mesmo
que é a glória ideal dessa arte,
parecia irremediavelmente
comprometida.
Mais prosaicamente, a "Sonata" de Franck foi comprometida mesmo pelo pianista Samuel
Sanders, um acompanhante de
renome, mas um tanto tímido
para as magnitudes dessa música. Não é só questão dos
acordes enormes e contraponto torcido, mas sim da inteligência interna de uma peça que
deslumbrava Proust. Não é
uma sonata para violino com
acompanhamento: é música
para dois solistas, e no Alfa
Real só havia um.
Pontos altos da noite: o blues
do segundo movimento da
"Sonata" de Ravel, com Perlman fazendo o violino soar como garrafa de vidro em violão
de cordas de aço; o pouco conhecido scherzo de Brahms,
escrito aos 20 anos para uma
sonata coletiva (com Schumann e um aluno), o "Recitativo Fantasia" de Franck, com
a grande frase, preparada há
dois movimentos, caindo afinal
sobre a gente como uma felicidade, ou uma fatalidade, um
dos grandes momentos da história da ambivalência dos afetos.
É uma pena não poder gostar
mais de um concerto tão trabalhado e honesto. É uma pena
não poder se encantar com um
músico tão portentoso. Mas a
memória desse concerto já vai
se extinguindo junto com essa
resenha; e fica a vontade de ouvir música - a música da música -, toda a música que faltou
nessa noite de perfeições e tédio.
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