São Paulo, quinta, 21 de maio de 1998

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MÚSICA ERUDITA
Perlman faz concerto perfeito e tedioso

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Imagine um músico que domina completamente o seu instrumento. Domina a música com a habilidade de quem fala sua língua materna e tem prazer de falar. Não há fácil ou difícil, nesse estado: só o prazer das coisas simples e outro prazer, de uma vertigem das notas, um artesanato voluptuoso dos dedos e da imaginação.
Agora imagine esse mesmo músico chegado a um ponto tal que a própria música parece pequena para tanta destreza. A experiência e a confiança desse músico são tão grandes que tudo, agora, parece revisitado; a espontaneidade desaparece e a música, mais que compreendida, soa amestrada, vazia.
Essa poderia ser a trama de um conto de Henry James, ou de um poema de Robert Browning. Mas é só a sugestão, em tons romanescos, da experiência de ouvir o violinista Itzhak Perlman, em seu concerto de terça-feira, no teatro Alfa Real.
Seria injusto não falar bem de um músico como Perlman, capaz de executar proezas virtuosísticas, como o perpetuum mobile da "Sonata" de Ravel, assim como outras façanhas, menos vistosas, mas mais difíceis ainda, como sustentar a tensão das linhas em César Franck, ou entrar de cheio no tom de bravura melancólica de Brahms, ou de costurar no ar as linhas de semicolcheias de Mozart.
Mas tanta proeza e tanto domínio acabaram resultando num concerto oco. A perfeição do corpo da música não garante a sua expressão; e a coincidência entre notas e significado, uma coincidência consigo mesmo que é a glória ideal dessa arte, parecia irremediavelmente comprometida.
Mais prosaicamente, a "Sonata" de Franck foi comprometida mesmo pelo pianista Samuel Sanders, um acompanhante de renome, mas um tanto tímido para as magnitudes dessa música. Não é só questão dos acordes enormes e contraponto torcido, mas sim da inteligência interna de uma peça que deslumbrava Proust. Não é uma sonata para violino com acompanhamento: é música para dois solistas, e no Alfa Real só havia um.
Pontos altos da noite: o blues do segundo movimento da "Sonata" de Ravel, com Perlman fazendo o violino soar como garrafa de vidro em violão de cordas de aço; o pouco conhecido scherzo de Brahms, escrito aos 20 anos para uma sonata coletiva (com Schumann e um aluno), o "Recitativo Fantasia" de Franck, com a grande frase, preparada há dois movimentos, caindo afinal sobre a gente como uma felicidade, ou uma fatalidade, um dos grandes momentos da história da ambivalência dos afetos.
É uma pena não poder gostar mais de um concerto tão trabalhado e honesto. É uma pena não poder se encantar com um músico tão portentoso. Mas a memória desse concerto já vai se extinguindo junto com essa resenha; e fica a vontade de ouvir música - a música da música -, toda a música que faltou nessa noite de perfeições e tédio.



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