São Paulo, sexta-feira, 21 de junho de 2002

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ANÁLISE

Onde foi parar a autenticidade?

MALCOLM McLAREN
ESPECIAL PARA O "GUARDIAN"

Há 25 anos, trabalhadores da fábrica de discos da CBS na Inglaterra resgataram alguns discos contrabandeados que seriam derretidos, escondendo-os em seus casacos. Eram cópias do novo single do Sex Pistols, "God Save the Queen". Uma semana depois de assinar com o Sex Pistols, a A&M tinha rescindido o contrato e tentado destruir todos os discos existentes. Meu escritório começou a receber telefonemas de pessoas oferecendo cópias ilegais de "God Save the Queen" a um preço exorbitante de 20 libras cada uma. Relutei um pouco, mas acabei por comprar várias caixas.
Semanas mais tarde, assinei o contrato do grupo com o selo Virgin, de Richard Branson. Os funcionários da Virgin ficaram tão instigados que queriam conspirar comigo para criar uma comemoração alternativa ao jubileu de prata da rainha Elizabeth, contratando um barco nosso para seguir a frota de embarcações dela na descida do rio Tâmisa.
O Sex Pistols foi proibido de tocar em terra, e as rádios proibidas de tocar "God Save the Queen". Só restava um lugar: a água. Uma das lembranças mais delirantes que tenho é a de multidões de punks lotando as pontes de Londres, pendurados nos postes de luz, gritando, atirando garrafas, ao som da canção que se espalhava sobre o Tâmisa: "God save the Queen/she ain't no human being/ she made/ you a moron/ a potential H-bomb/ God save the Queen/ we mean it maaan!".
Enfrentamos a polícia fluvial. O barco foi conduzido de volta a Charing Cross, escoltado por ela. Eu estava entre as muitas pessoas presas quando desembarcamos. Passamos a noite na cadeia. Não sei bem por que, mas não chegamos a ver Richard Branson. Ele simplesmente desapareceu. Diante do juiz, senti que algo no ar havia mudado. Ele me fez sentir que eu era um criminoso e implorar por perdão e, ademais, disse que, se eu alguma vez na vida voltasse a aparecer diante dele por um delito semelhante, não hesitaria um instante sequer em me enviar a uma das prisões de Sua Majestade, onde eu cumpriria sentença de não menos de três meses.
No mesmo dia fatídico conhecido como o jubileu de prata, a mídia se apaixonou pelos Sex Pistols, pelo dinheiro que eles poderiam ganhar e o poder que tinham o potencial de exercer. Naquele dia, o "Daily Mirror" colocou na capa nosso retrato da rainha -a célebre foto tirada por Cecil Beaton, mas em versão modificada, com um alfinete trespassando o nariz de Elizabeth. O retrato oficial foi relegado à página 3. A mídia preferiu adorar a nossa versão.
A cultura pop tinha feito uma diferença. A revolução musical do punk rock era aberta a todos. Não era necessário possuir habilidades para poder concorrer com seus predecessores. Era um fenômeno faça-você-mesmo. Por um momento, todos foram artistas.
Naquela semana do jubileu de prata, foi quase impossível comprar o disco, pois não era encontrado na maioria das lojas. Não podia ser ouvido na rádio, exceto em ocasiões raras, como parte de um noticiário. Sua divulgação foi proibida. As emissoras de TV comerciais se recusavam a aceitar nossos anúncios caseiros.
Apesar disso, o disco foi, inegavelmente, o número um. As paradas nacionais foram falsificadas pela própria indústria da música. Uma faixa de Rod Stewart foi apresentada como sendo a número um, embora "God Save the Queen", vendido pelas mesmas distribuidoras, estivesse vendendo o dobro de cópias. Como o disco conseguiu atingir esse status? Era algo que contrariava todas as regras de marketing normais e que rompia com os valores econômicos largamente aceitos. O consumidor era um alienígena que eles não compreendiam.
No dia seguinte ao jubileu de prata, tudo na mídia estava debaixo do olhar crítico da nova geração. O jubileu de prata foi um ponto de virada, um momento cujo impacto é sentido até hoje.
As mesmas camisetas "God Save the Queen" vendidas naquela época são vendidas hoje em lojas de Beverly Hills. Elas aparecem, 25 anos mais tarde, nos corpos de Kate Moss e Lauren Hutton, fotografadas na "Vogue". Agora, a camiseta é a antítese daquilo que ela representava originalmente.
Além disso, há um mês, Johnny Rotten, o vocalista do Sex Pistols, disse que fez lobby junto ao palácio para poder cantar para a rainha em seu jubileu de ouro, que nunca foi pró ou contra a monarquia e que, já que temos um sistema monárquico, seria melhor que ele "funcionasse direito". E minha antiga parceira Vivienne Westwood aceitou condecorações da rainha e agora acha a monarca ótima. Isso me deixa confuso. Não compreendo como os pontos de vista deles podem ter mudado tanto. Eu ainda penso mais ou menos como pensava em 1977.
Há duas palavras que podem resumir as oposições que caracterizam nossa cultura atual. Uma é autenticidade e a outra é karaokê. O karaokê consiste em repetir as palavras de outros, numa mímica. É a vida por procuração, sem o estorvo do processo bagunçado da criatividade e sem precisar assumir a responsabilidade por ela, quando a apresentação chega ao fim. Acho que hoje vivemos num mundo karaokê. Pode-se dizer que Tony Blair é nosso primeiro primeiro-ministro karaokê.
Mas existe um contraponto a tudo isto: um desejo inquestionável de autenticidade. O que é isso? Onde podemos encontrá-lo? Eu o encontrei no dia do jubileu de prata: aqueles punks reunidos nas pontes de Londres, as camisetas "God Save the Queen", a risada diante do juiz após minha noite na cadeia, tudo isso foi parte de uma atitude que se expressou em algo que pode melhor ser descrito como real: algo que foi autêntico.


Malcolm McLaren foi empresário do Sex Pistols
Tradução Clara Allain


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