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LIVROS/LANÇAMENTOS
"UM GENERAL NA BIBLIOTECA"
Obra traz narrativas escritas de 1943 a 1984
Leveza do escritor Italo Calvino domina a coletânea
RINALDO GAMA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Logo no início de "Leveza",
primeira das seis conferências que deveria fazer na Universidade de Harvard (EUA), Italo
Calvino observava: "Depois de
haver escrito ficção por 40 anos,
chegou o momento de buscar
uma definição global de meu trabalho: no mais das vezes, minha
intervenção se traduziu por uma
subtração do peso; esforcei-me
por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes,
ora às cidades; esforcei-me sobretudo por tirar peso à estrutura da
narrativa e à linguagem".
Calvino, nascido em 1923 em
Santiago de Las Vegas, Cuba, e radicado na Itália, morreria em 85,
antes de apresentar "Leveza" e as
demais conferências (reunidas
aqui no volume "Seis Propostas
para o Próximo Milênio").
Assim como "Seis Propostas",
"Um General na Biblioteca" é
uma obra póstuma, editada pela
viúva do autor, Esther Judith Singer Calvino. Nele aparecem 32
narrativas -que até o lançamento na Itália, em 93, jamais haviam
saído em livro ou permaneciam
inéditas- escritas entre 1943 e 84.
Tamanha cobertura no tempo,
no entanto, não autorizaria a classificá-lo como uma súmula da
produção de Calvino. O que faz de
"Um General" uma espécie de
cartão de visitas do escritor é a tal
leveza que Calvino reconhecia como sua marca mais singular e que
domina a coletânea.
Esclareça-se que leveza não se
confunde com superficialidade.
"Quero dizer [com esse conceito"
que preciso mudar de ponto de
observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica", explicou o ficcionista naquela
planejada conferência.
Sua atenção para o embate peso
versus leveza foi despertada no
início da carreira. Oriundo da Resistência, Calvino engajou-se no
movimento neo-realista, que buscava reatar os laços entre arte e sociedade.
"O dever de representar nossa
época era um imperativo categórico para todo jovem escritor",
testemunha. Contudo, ele se deu
conta de que "entre os fatos da vida e um estilo que eu desejava
ágil, havia uma diferença que eu
tinha dificuldade em superar".
Para conseguir isso, o ficcionista
cultivaria a leveza, investindo em
duas frentes: na fábula (transformada, em muitas oportunidades,
em alegoria fantástica) e no humor (baseado na ironia).
Ambas facetas da leveza encontram em "Um General" textos paradigmáticos. A primeira parte da
obra é dominada por apólogos
-não por acaso, pois contém
narrativas do período 1943-58, isto é, dos dias de guerra até a fase
imediatamente posterior à saída
de Calvino do Partido Comunista
Italiano (abandonado em 1957,
após 13 anos de filiação).
Em 1943, ele assinalava: "O apólogo nasce em tempos de opressão. Quando o homem não pode
dar forma clara a seu pensamento, exprime-o em fábulas".
Alguns desses contos presentes
em "Um General" se destacam.
"Quem se Contenta" (43), por
exemplo, narra a história de um
país "em que tudo era proibido",
menos o jogo de bilharda; quando
a proibição é suspensa, os habitantes preferem continuar só jogando bilharda.
Datada de 1953, a narrativa que
nomeia a edição brasileira é extraordinária. Suspeitando que os
livros contivessem "opiniões contrárias" a eles, militares invadem
uma biblioteca, tomados pelo furor da censura. Aos poucos, porém, rendem-se ao que lêem.
A ironia também aparece na
primeira parte de "Um General",
mas sua presença acentua-se na
segunda, que traz textos escritos
entre 1968 e 84, vários sob encomenda. "O Homem de Neanderthal" (75) é talvez o conto mais divertido do ficcionista, que nele
debocha de chavões históricos,
psicanalíticos e sociológicos.
Nem o Calvino adepto da literatura experimental do Oulipo está
fora de "Um General". "O Incêndio da Casa Abominável" (73), escrito para a IBM, foi, segundo sua
viúva, "destinado mentalmente"
ao grupo de Raymond Queneau.
Que leveza pode haver numa
narrativa como essa, pautada pelas infinitas possibilidades de operações em um computador? Ou
no desconcertante "A Memória
do Mundo" (68)? Ou ainda numa
história ("A Decapitação dos Chefes", 69) que trata de um sistema
político baseado no assassinato
ritual e regular de seus dirigentes?
É preciso estar leve para enfrentar o insuportável peso de ser, parece ensinar o livro.
"Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de
mais leve, as nuvens e o vento",
lembra Calvino, na conferência
que não fez, aliviado que foi de todos os pesos -elevando-se a um
dos pontos mais altos da literatura do século 20.
Rinaldo Gama é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, editor-executivo dos "Cadernos de Literatura Brasileira" do IMS e autor de "O Guardador de
Signos: Caeiro em Pessoa" (Perspectiva/
IMS, 95).
Um General na Biblioteca
Prima Che Tu Dica "Pronto"
Autor: Italo Calvino
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 24 (250 págs.)
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