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São Paulo, segunda-feira, 21 de julho de 2003

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NELSON ASCHER

Nada de novo sob o sol

O progresso é produto do progresso. A idéia de que as coisas se alteram decorre de alterações que muitos sentiram na carne antes de reconhecê-las conscientemente. A regra que prevaleceu durante quase toda a história e cuja formulação lapidar -"Não há nada de novo sob o sol"- está no livro bíblico chamado "Eclesiastes" admitia somente uma exceção: se algo mudar, será para pior. Conceber o futuro não sob a forma do inevitável declive civilizacional postulado por Oswald Spengler ou Arnold Toynbee, mas sim como o arco-íris em cujo fim se esconde o pote utópico de ouro, é um costume recente.
O que mais seria capaz de explicar que, no debate entre as características herdadas e as adquiridas, o pêndulo tenha se paralisado por meio século na certeza de que cada indivíduo ao nascer não passa de uma folha em branco a ser preenchida pela sociedade? Se bem que o neurocientista americano Steven Pinker acabe (em seu "A Lousa em Branco: A Moderna Negação da Natureza Humana") de recolocar o pêndulo em movimento, ainda vai demorar para que os mestres-pensadores aceitem as provas de uma complexa pré-programação. A "folha em branco", outrora uma hipótese revolucionária, virou, nas mãos dos revolucionários (que nunca mudam), um dogma que impede o reconhecimento das constantes da natureza humana, a mais relevante das quais, no presente, é a de que os ódios entre indivíduos ou grupos são tanto maiores quanto menores forem as distâncias e diferenças que os separam. Ninguém causa raiva como um amigo, exceto um parente ou, pior, o/a cônjuge, e o que faz da extinção de nossa espécie uma aposta segura é a irrefreável propensão a pôr fogo no apartamento do vizinho do andar de baixo.
Talvez seja por isso que a esquerda britânica, atirando nos seus quatro próprios pés (seis no caso da extrema esquerda), entrou em conflito aberto com o único líder capaz de mantê-la no governo. Caso Tony Blair caia, os trabalhistas podem dizer adeus à União Européia, ao euro e ao poder. O antiblairismo esquerdista nasceu dos rancores de uma minoria influente que esperava do criador do New Labour reações semelhantes às de países como França e Alemanha que, com a desculpa de preservar as singularidades de um continente ameaçado de americanização, resolveram hostilizar, além dos europeus que vivem do lado oposto do Canal da Mancha e seus descendentes transatlânticos, os espanhóis, italianos, tchecos, húngaros e poloneses, aliando-se, para tanto, aos seguintes defensores dos direitos humanos : Vladimir Putin, o carrasco de Grozny (capital da Tchetchênia) ; "Baby Doc" Assad, ditador hereditário da Síria ; Robert Mugabe, instaurador, no Zimbábue, de um novo apartheid (desta vez, contra os brancos).
Não há, porém, nada de novo sob o sol. Quando, no começo dos anos 20, o partido trabalhista se preparava para assumir pela primeira vez o poder na Inglaterra (1924), alguém disse que daria ao arquiteto de sua vitória, Ramsay MacDonald, o mesmo apoio que a corda dava ao enforcado. Quem ache que essa frase espirituosa aparecia num discurso de Mussolini ou do jovem Hitler se engana: seu autor foi Lênin. Dez anos depois, o sucessor deste, combatendo os social-democratas, isto é, os "social-fascistas" alemães não estendeu gentilezas similares aos nazistas e aproveitou a Guerra Civil Espanhola para, dizimando seus rivais antifranquistas, adiantar o trabalho sujo do futuro "Caudillo de España por la Gracia de Dios".
Se a Broadway mantém seus "Cats" e "Les Misérables" em cartaz anos a fio, o Velho Mundo dispõe, em contrapartida, de um espetáculo folclórico que se repete sem parar: o da intelectualidade ocidental que, embora jamais houvesse protestado contra meio século de despotismo soviético nos países do leste, acusa agora gente honrada e corajosa como o polonês Adam Michnik, o húngaro György Konrád e o tcheco Vaclav Havel de traidores da "causa européia" (seja lá o que isso for), pois estes escritores simplesmente não aceitam que a maneira mais eficaz de lutar pelo ideário iluminista consista em simpatizar com o islamismo militante ou tomar, contra os anglo-americanos, o partido dos teocratas iranianos, dos burocratas chineses que se valem da aplicação em escala industrial da pena de morte para comercializar os órgãos dos condenados ou de ditaduras de opereta (trágicas para seus súditos) como a de Havana, onde jornalistas são presos e dissidentes, executados.
Sucede que mesmo paranóicos têm inimigos de verdade. A Europa, de fato ameaçada de americanização, ou seja, de modernização, está diante de uma encruzilhada. Embora tanto os EUA quanto a União Européia sejam importadores de gente, enquanto esta, com sua população minguante e laborófoba, precisa de garis e atrai uma mão-de-obra desqualificada que, cedo ou tarde, reduzida a uma casta de párias, investe seu auxílio-desemprego em mesquitas e explosivos, aqueles absorvem, entre outros, peritos em software vindos da Índia, asiáticos que trabalham 25 horas por dia e cientistas europeus. Trocando em miúdos, a exceção européia, entendida como alternativa ao capitalismo "selvagem" e aos excessos populistas da democracia, só sobrevive hoje em dia graças a um respirador artificial enferrujado cujas últimas prestações não foram pagas. Aos europeus, ou melhor, às sua elites, resta decidir se seu continente se tornará em breve (e com sorte) uma sub-América ou uma mega-Argélia. Não há mais nenhuma "terceira via".


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