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RODAPÉ
Totem e tabu
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Paulo Rodrigues estreou na
literatura com mais de 50
anos, lançando em 2001 a novela
"À Margem da Linha".
Surpreendentemente maduro
para um autor iniciante, o livro
transforma a história de dois irmãos que seguem uma estrada de
ferro em busca do pai numa espécie de parábola: "Por mais que a
gente ande, é sempre mesma danação", diz uma das personagens
dessa narrativa cuja linguagem
trabalhada e solene faz da viagem
uma peregrinação arquetípica às
origens.
Agora, Rodrigues lança uma coletânea de contos intitulada "Redemoinho", conservando a mesma força estilística que já levou a
comparações com a prosa de Raduan Nassar (que, diga-se entre
parênteses, "descobriu" o autor
num concurso literário).
Tais comparações podiam, a
princípio, parecer precipitadas,
mas agora se mostram mais do
que pertinentes: assim como o romancista de "Lavoura Arcaica"
(que também teve estréia literária
tardia), Rodrigues ritualiza cada
gesto de suas personagens, extraindo um sentido mítico das relações familiares, dos enlaces sexuais, dos impulsos elementares
que pulsam com grande carga
sensória nas descrições que o autor faz de suas criaturas.
Já em "Catedral", conto de abertura, esse traço fica patente. O texto encerra uma única cena, o confronto entre um filho adotivo e
seu padrasto. O conflito fora deflagrado por um incesto apenas
insinuado, indicando o real sentido do conto: o reconhecimento
da ambigüidade do amor entre
pai e filho, em que a identificação
se dá "a partir" da transgressão.
Rodrigues descortina no pequeno
teatro familiar a polaridade entre
assassinato simbólico e interdição, totem e tabu, em que o reconhecimento do desejo vem de par
com o reconhecimento da animalidade que é preciso sufocar:
"Meu corpo era um curral irrisório para conter o animal que eu
escondia nas entranhas. Por isso,
toda essa cortesia, todas as gentilezas, só me fizeram despertar demônios que eu mesmo desconhecia. Mas eu me deixava levar pelas
tentações, Deus sabe que, depois
de cada deslize, denunciando a
consciência da culpa, eu trazia no
roxo dos olhos o estigma dos predestinados".
Entre todas as personagens de
Rodrigues, se interpõe uma violência latente, mas ao mesmo
tempo muito codificada e saturada de simbolismo. Em "Alfredo
aos Dezessete", essa violência se
torna literal, na descoberta assassina que um adolescente faz de
sua sexualidade.
E, em "Maria Helena Desabrocha", a descoberta do corpo que
amadurece coincide com a repugnância física quanto à figura paterna -mas com o risco de fazer
o conto cair em lugares-comuns
sobre a feminilidade: "Parece-lhe
que o forte suor do pai ainda flutua na escada, como um aviso de
mau agouro. Um grosso nó vem
magoar-lhe a garganta. Traz uma
dor física. Suas alterações repentinas de humor têm uma causa lógica, mas ela não entende. É a mulher que rompe a barreira do medo, e timidamente desabrocha".
Em "Redemoinho" (título que
não corresponde a um conto em
particular, mas enfeixa o sentido
geral dos relatos), as relações de
parentesco são um destino e uma
condenação. O "familiar" (no duplo sentido do termo) encerra
aquilo que é mais estranho, sinistro (dentro da acepção freudiana
da palavra).
A esse estranhamento essencial
correspondem alguns dos textos
mais fortes do livro: "Coágulo"
(em que reaparece o tema do incesto) e, sobretudo, "Paul" (em
que a espera ansiosa por uma figura imaginária, um "estrangeiro" que jamais aparece, transforma-se em pesadelo e razão da
existência da personagem).
Às vezes os enredos dos contos
parecem obscuros, como se houvesse motivações ocultas para a
ação obsessiva de suas personagens. Mas isso se deve a outro aspecto do trabalho de Paulo Rodrigues: uma percepção religiosa da
realidade, conseqüente com sua
prosa ritualizada -como em
"Lama" (relato sobre uma "cidade doente", cheia de sugestões
messiânicas sobre o fim do mundo) e "Antônia" (em que ressurgem os temas da personagem
imaginária e dos estigmas, agora
por meio do viés da possessão e
da loucura).
Redemoinho
Autor: Paulo Rodrigues
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 25 (200 págs.)
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