São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2004

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RODAPÉ

Totem e tabu

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Paulo Rodrigues estreou na literatura com mais de 50 anos, lançando em 2001 a novela "À Margem da Linha".
Surpreendentemente maduro para um autor iniciante, o livro transforma a história de dois irmãos que seguem uma estrada de ferro em busca do pai numa espécie de parábola: "Por mais que a gente ande, é sempre mesma danação", diz uma das personagens dessa narrativa cuja linguagem trabalhada e solene faz da viagem uma peregrinação arquetípica às origens.
Agora, Rodrigues lança uma coletânea de contos intitulada "Redemoinho", conservando a mesma força estilística que já levou a comparações com a prosa de Raduan Nassar (que, diga-se entre parênteses, "descobriu" o autor num concurso literário).
Tais comparações podiam, a princípio, parecer precipitadas, mas agora se mostram mais do que pertinentes: assim como o romancista de "Lavoura Arcaica" (que também teve estréia literária tardia), Rodrigues ritualiza cada gesto de suas personagens, extraindo um sentido mítico das relações familiares, dos enlaces sexuais, dos impulsos elementares que pulsam com grande carga sensória nas descrições que o autor faz de suas criaturas.
Já em "Catedral", conto de abertura, esse traço fica patente. O texto encerra uma única cena, o confronto entre um filho adotivo e seu padrasto. O conflito fora deflagrado por um incesto apenas insinuado, indicando o real sentido do conto: o reconhecimento da ambigüidade do amor entre pai e filho, em que a identificação se dá "a partir" da transgressão. Rodrigues descortina no pequeno teatro familiar a polaridade entre assassinato simbólico e interdição, totem e tabu, em que o reconhecimento do desejo vem de par com o reconhecimento da animalidade que é preciso sufocar:
"Meu corpo era um curral irrisório para conter o animal que eu escondia nas entranhas. Por isso, toda essa cortesia, todas as gentilezas, só me fizeram despertar demônios que eu mesmo desconhecia. Mas eu me deixava levar pelas tentações, Deus sabe que, depois de cada deslize, denunciando a consciência da culpa, eu trazia no roxo dos olhos o estigma dos predestinados".
Entre todas as personagens de Rodrigues, se interpõe uma violência latente, mas ao mesmo tempo muito codificada e saturada de simbolismo. Em "Alfredo aos Dezessete", essa violência se torna literal, na descoberta assassina que um adolescente faz de sua sexualidade.
E, em "Maria Helena Desabrocha", a descoberta do corpo que amadurece coincide com a repugnância física quanto à figura paterna -mas com o risco de fazer o conto cair em lugares-comuns sobre a feminilidade: "Parece-lhe que o forte suor do pai ainda flutua na escada, como um aviso de mau agouro. Um grosso nó vem magoar-lhe a garganta. Traz uma dor física. Suas alterações repentinas de humor têm uma causa lógica, mas ela não entende. É a mulher que rompe a barreira do medo, e timidamente desabrocha".
Em "Redemoinho" (título que não corresponde a um conto em particular, mas enfeixa o sentido geral dos relatos), as relações de parentesco são um destino e uma condenação. O "familiar" (no duplo sentido do termo) encerra aquilo que é mais estranho, sinistro (dentro da acepção freudiana da palavra).
A esse estranhamento essencial correspondem alguns dos textos mais fortes do livro: "Coágulo" (em que reaparece o tema do incesto) e, sobretudo, "Paul" (em que a espera ansiosa por uma figura imaginária, um "estrangeiro" que jamais aparece, transforma-se em pesadelo e razão da existência da personagem).
Às vezes os enredos dos contos parecem obscuros, como se houvesse motivações ocultas para a ação obsessiva de suas personagens. Mas isso se deve a outro aspecto do trabalho de Paulo Rodrigues: uma percepção religiosa da realidade, conseqüente com sua prosa ritualizada -como em "Lama" (relato sobre uma "cidade doente", cheia de sugestões messiânicas sobre o fim do mundo) e "Antônia" (em que ressurgem os temas da personagem imaginária e dos estigmas, agora por meio do viés da possessão e da loucura).


Redemoinho
   
Autor: Paulo Rodrigues
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 25 (200 págs.)



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