São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2004

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ERUDITO/CRÍTICA

Ópera de Verdi volta ao Teatro Municipal em montagem polêmica do diretor mineiro Gabriel Villela

"Don Carlo" em tempos de guerra, ontem e hoje

Jefferson Coppola/Folha Imagem
Cena do ensaio da ópera "Don Carlo", no Teatro Municipal de SP, com o provocador figurino conceitual do diretor Gabriel Villela


ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Tinha tudo para dar certo: guerra, religião, incesto, homossexualidade, tragédia grega, Che Guevara e Guns 'n Roses, sem falar nos sete espetaculares pastores alemães da Polícia Militar. Tinha tudo para dar errado: guerra, religião, incesto, homossexualidade, tragédia grega, Che Guevara e Guns 'n Roses, sem falar nos sete espetaculares pastores alemães da Polícia Militar. No final das contas, foi uma mistura de acertos e desacertos a estréia do "Don Carlo" de Gabriel Villela, anteontem, no Teatro Municipal.
Que este é o "Don Carlo" de Villela ninguém tem dúvida. A ópera de Verdi (1813-1901) foi reinventada mais uma vez, um século e meio depois de sua primeira apresentação, não só porque qualquer geração, sem fazer força, é autora daquilo que ouve, mas porque o diretor mineiro entrou nas águas líricas como um poderoso reagente, que tinge tudo de outra cor. Se a impressão que fica, depois, não é fácil de definir, talvez seja porque o resultado acaba se mostrando insuficiente comparado às ambições que a própria montagem criou.
O que não seria justo é reclamar contra o princípio dessa montagem: ela tem de ser julgada segundo os seus critérios (não necessariamente os de quem critica). Não vale, por exemplo, reclamar contra a mistura de teatro grego -sugerido pela projeção de um anfiteatro na lateral do palco, pelas colunas e afrescos no fundo e pela armação das arquibancadas do coro- com o figurino de roqueiro-teatreiro dos soldados -capacetes, jaquetas de couro com a cara de Che Guevara na frente e o nome das bandas americanas atrás, saias quadriculadas (para homens e mulheres) e All Star vermelhos-, tudo isso para encenar uma história que se passa na Espanha barroca, recontada a pedido do gênio italiano pelos libretistas oitocentistas franceses, a partir da peça original do romântico alemão Friedrich Schiller.
Tantos contrastes, reforçados pelo cromatismo do cenário (lilás com vermelho e verde, por exemplo), servem, antes de mais nada, para destruir qualquer fixação histórica da peça, atualizando a barbárie num contínuo que iguala um rei católico da Inquisição a um presidente americano atual, assim como aos facínoras que atacaram Tróia etc. Entendidos no contexto da encenação propriamente dita -um palco dentro do palco, um tablado à maneira do teatro mambembe-, eles têm ainda outro papel: contribuem para dinamitar qualquer vestígio de teatro realista e transformam a ópera num teatro do teatro.
Só assim se pode aceitar, também, a encenação dos cantores-atores, engessados pelo diretor num registro quase hierático. Uma forma, quem sabe, de controlar os maneirismos de praxe, mas que, afinal, acaba criando outros maneirismos. Exceção feita ao rei Felipe do ótimo baixo búlgaro Julian Konstantinov, que já surge monolítico no palco e faz as almas delicadas correrem. Já no caso dos outros solistas, o tenor mexicano Don Carlo, a romena Mariana Cioromila e os brasileiros Laura de Souza (soprano) e Rodrigo Esteves (barítono, brilhante na quinta-feira), a balança natural continuava pendendo para o melodrama, sem que nenhum ficasse à vontade no papel de fazer um papel.
E o incesto? Tecnicamente, é só adultério (platônico), entre o filho do rei e sua madrasta (que era sua antiga noiva). Villela não força a mão neste ponto, assim como passa quase batido pela amizade entre Carlo e Rodrigo, que qualquer leitor de hoje saberia enxergar também com outros olhos. Especialmente com outros ouvidos. Aqui se toca no ponto mais frágil: Villela parece pouco interessado nas nuances da música, para além da ordem narrativa.
Coral Lírico, como sempre, muito bom; já a Sinfônica, regida por Ira Levin, fez uma estréia fraca (com destaque positivo para o lindo solo de violoncelo no ato 3). Quem estava bem era o coro de cães: sempre naturais, aprumados, calmos, mas latindo no fim com eloqüência; e, de longe, os mais bem vestidos da companhia.


Don Carlo
  
Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de Azevedo, s/nš, SP, tel. 0/xx/11/222-8698)
Quando: hoje, ter. e sex., às 20h30; dia 29, às 17h
Quanto: de R$ 30 a R$ 100



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