São Paulo, Sábado, 22 de Janeiro de 2000


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"Freyre descolonizou pensamento brasileiro"

da Redação

Leia a seguir trechos da entrevista do cineasta Nelson Pererira dos Santos à Folha. (SG)

Folha - Por que o sr. desistiu de filmar o seu 17º longa-metragem, "Guerra e Liberdade - Castro Alves em São Paulo", para se dedicar ao documentário de "Casa-Grande & Senzala"?
Nelson Pereira dos Santos -
A captação para "Guerra e Liberdade - Castro Alves em São Paulo" foi permitida até 31 de dezembro do ano passado. Se eu não conseguisse começar a filmar até aquela data perderia tudo o que foi captado. Então esse outro projeto surgiu como parte desse movimento de redescoberta da história do Brasil. Nós transferimos o dinheiro do filme para o documentário. Mas eu não desisti totalmente do projeto. Ele foi bolado no tempo das vacas gordas, mas o Brasil enfraqueceu depois.

Folha - Em 98, Pedro Bial também fez uma adaptação da obra de Guimarães Rosa, cujos making ofs foram transmitidospelo GNT. Os projetos em parceria com a TV seriam uma saída para o cinema nacional?
Pereira dos Santos -
É uma das alternativas, não é a única saída obviamente. Todos os meus últimos filmes, "Jubiabá", "A Terceira Margem do Rio", "Cinema de Lágrimas", foram feitos em parceria com a TV francesa e inglesa. Na Europa isso é muito comum. Nos Estados Unidos a produção direta para a TV é muito grande. No Brasil poderia acontecer isso.

Folha - A literatura, sobretudo a ficção, é sua fonte permanente de inspiração. Como é o desafio de lidar com a sociologia?
Pereira dos Santos -
Acho que não me afasto muito da tradição de trabalhar com textos literários. Freyre além de sociólogo e crítico da cultura, é um escritor de mão cheia. Ele mesmo sempre disse que tratava de antropologia, mas era antes de tudo um escritor.

Folha - Quando "Casa-Grande & Senzala" foi publicado, o livro foi acusado de pornografia, sugeriram que fosse queimado. O sr. inclui esse impacto negativo inicial no documentário?
Pereira dos Santos -
O primeiro episódio da série é justamente sobre o impacto causado por "Casa-Grande & Senzala", as opiniões favoráveis e as desfavoráveis. Toda a revolução que o livro causou até ser compreendido. Tento mostrar também toda a história intelectual de Freyre, a sua formação e influências.

Folha - Freyre foi a âncora da tese da democracia racial e o sr. é considerado o pai do cinema novo. Vocês se aproximam nesses aspectos de vanguarda?
Pereira dos Santos -
A influência de Freyre foi decisiva para a geração do cinema novo, as idéias de miscigenação como algo positivo. Isso está no meu cinema de certa maneira, o negro está nas telas e não se pode vê-lo de outra maneira a não ser depois do pensamento de Freyre. Antes do cinema novo, pensava-se que o negro não era cinematográfico. Nós todos bebemos da fonte de escritores, modernistas, sociólogos.

Folha - Por outro lado, o sr. sempre foi um comunista de carteirinha e Freyre, embora no princípio tenha sido acusado de comunista, se definia sobretudo como um "conservador". Qual é a sua visão de Gilberto Freyre?
Pereira dos Santos -
Entrei no partido com cerca de 17 anos, pertencia à juventude comunista. Militei até 56. O Gilberto Freyre sempre se mostrou bastante dual quanto ao posicionamento político. Ele foi acusado de comunista, mas também de anarquista, reacionário e conservador, impunemente. Era assim também que ele se definia. Estou procurando ser fiel a essas contradições, agrupando material de televisão, de arquivo familiar, de entrevistas dadas pelo Gilberto a diferentes veículos, para compor essas facetas.

Folha - O seu cinema sempre teve intenção documental. O sr. praticamente fundou o neo-realismo no Brasil com "Rio 40 Graus" e "Rio Zona Norte". O sr. continua vendo o cinema como meio de conscientização, mesmo por meio da televisão?
Pereira dos Santos -
O cinema cumpre essa função histórica, é instrumento de conscientização. A obra de Gilberto Freyre procurou descolonizar o pensamento brasileiro e é preciso, ainda, que seja popularizada. Se conseguirmos fazer isso pela TV, então um dos objetivos será alcançado. Numa época em que se fala em globalização e não se percebe que, na realidade, nós é que estamos sendo globalizados, é preciso relembrar e rediscutir o pensamento de Gilberto Freyre. A obra de Freyre é básica para se entender o Brasil.

Folha - Ao sintetizar o contato entre colonizadores e colonizados, Freyre insiste no livro que o senhor de engenho se misturou fecunda e poligamicamente com as escravas, num exemplo de convívio racial democrático. Isso é polêmico na obra. Como o sr. vai abordar essa questão?
Pereira dos Santos -
Conto, no roteiro, com o apoio de um grande conhecedor da obra de Gilberto Freyre, que é o professor Edson Nery da Fonseca, que foi colaborador do Gilberto durante anos e anos. Eu optei por não interpretar o pensamento de Gilberto Freyre. Vou tentar expô-lo na sua essência, traduzir o seu pensamento, sobretudo o que ele chama de "metarraça brasileira", ou seja, o resultado da mestiçagem de raças e culturas diferentes. Vou tentar apresentar isso de uma maneira neutra. Quero mostrar a explicação dele para o Brasil e espero que esse pensamento possa ser exposto de modo cristalino. Ele não é o único explicador do Brasil. Ele se contrapõe e se complementa com outros como Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. Se tudo der certo, gostaria de fazer também um documentário sobre a obra desses outros pensadores.

Folha - A sua cinematografia dos anos 60 e 70 se afastou um pouco do político e se aproximou mais do erótico. Para Freyre, o Brasil era um país em que a sensualidade superava a racionalidade. Trabalhar com Freyre uniria os lados de sua carreira?
Pereira dos Santos -
Poxa, eu acho que é exatamente isso. Gilberto Freyre quando escreveu "Casa-Grande & Senzala" disse ter tido um prazer enorme, erótico. Eu vou tomar emprestado essas palavras dele e tentar fazer um filme chegando perto desse prazer que ele teve. Claro que não vou tentar me igualar, mas gostaria muito de dividir esse prazer erótico que ele sentiu.

Folha - Em 1982, Freyre criou o termo Brasil "rurbano", para definir o atraso brasileiro. Seu cinema é nesse sentido freyriano?
Pereira dos Santos -
Sim. Sempre procurei nos meus filmes mostrar as contradições brasileiras. Concordo com Freyre no sentido de que o Brasil só seria moderno se entendesse a sua pluralidade cultural. Esse discurso agora da globalização, de aderir a isso ou aquilo, é difícil pensar numa coisa só, numa homogeneidade.

Folha - O sr. acha que esse "boom" comemorativo em função dos 500 anos do Brasil dá margem a um ufanismo barato?
Pereira dos Santos -
Tudo isso que está surgindo em função dessas datas todas são um bom pretexto para se repensar certas coisas. Está surgindo um conjunto de pesquisas, um reencontro com o Brasil. "Casa-Grande & Senzala" é um livro que explica o Brasil. O livro não é unimetodológico, ele é plurimetodológico, não é cronológico, é psicológico. É uma busca do tempo perdido, como em Proust, só que a busca do tempo perdido do Brasil (risos).


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