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"Freyre descolonizou pensamento brasileiro"
da Redação
Leia a seguir trechos da entrevista do cineasta Nelson Pererira
dos Santos à Folha.
(SG)
Folha - Por que o sr. desistiu
de filmar o seu 17º longa-metragem, "Guerra e Liberdade - Castro Alves em São Paulo", para se
dedicar ao documentário de
"Casa-Grande & Senzala"?
Nelson Pereira dos Santos - A
captação para "Guerra e Liberdade - Castro Alves em São Paulo"
foi permitida até 31 de dezembro
do ano passado. Se eu não conseguisse começar a filmar até aquela
data perderia tudo o que foi captado. Então esse outro projeto
surgiu como parte desse movimento de redescoberta da história
do Brasil. Nós transferimos o dinheiro do filme para o documentário. Mas eu não desisti totalmente do projeto. Ele foi bolado
no tempo das vacas gordas, mas o
Brasil enfraqueceu depois.
Folha - Em 98, Pedro Bial também fez uma adaptação da obra
de Guimarães Rosa, cujos making ofs foram transmitidospelo
GNT. Os projetos em parceria
com a TV seriam uma saída para
o cinema nacional?
Pereira dos Santos - É uma das
alternativas, não é a única saída
obviamente. Todos os meus últimos filmes, "Jubiabá", "A Terceira Margem do Rio", "Cinema de
Lágrimas", foram feitos em parceria com a TV francesa e inglesa.
Na Europa isso é muito comum.
Nos Estados Unidos a produção
direta para a TV é muito grande.
No Brasil poderia acontecer isso.
Folha - A literatura, sobretudo
a ficção, é sua fonte permanente de inspiração. Como é o desafio de lidar com a sociologia?
Pereira dos Santos - Acho que
não me afasto muito da tradição
de trabalhar com textos literários.
Freyre além de sociólogo e crítico
da cultura, é um escritor de mão
cheia. Ele mesmo sempre disse
que tratava de antropologia, mas
era antes de tudo um escritor.
Folha - Quando "Casa-Grande
& Senzala" foi publicado, o livro
foi acusado de pornografia, sugeriram que fosse queimado. O
sr. inclui esse impacto negativo
inicial no documentário?
Pereira dos Santos - O primeiro episódio da série é justamente
sobre o impacto causado por "Casa-Grande & Senzala", as opiniões favoráveis e as desfavoráveis. Toda a revolução que o livro
causou até ser compreendido.
Tento mostrar também toda a
história intelectual de Freyre, a
sua formação e influências.
Folha - Freyre foi a âncora da
tese da democracia racial e o sr.
é considerado o pai do cinema
novo. Vocês se aproximam nesses aspectos de vanguarda?
Pereira dos Santos - A influência de Freyre foi decisiva para a
geração do cinema novo, as idéias
de miscigenação como algo positivo. Isso está no meu cinema de
certa maneira, o negro está nas telas e não se pode vê-lo de outra
maneira a não ser depois do pensamento de Freyre. Antes do cinema novo, pensava-se que o negro
não era cinematográfico. Nós todos bebemos da fonte de escritores, modernistas, sociólogos.
Folha - Por outro lado, o sr.
sempre foi um comunista de
carteirinha e Freyre, embora no
princípio tenha sido acusado de
comunista, se definia sobretudo
como um "conservador". Qual é
a sua visão de Gilberto Freyre?
Pereira dos Santos - Entrei no
partido com cerca de 17 anos, pertencia à juventude comunista.
Militei até 56. O Gilberto Freyre
sempre se mostrou bastante dual
quanto ao posicionamento político. Ele foi acusado de comunista,
mas também de anarquista, reacionário e conservador, impunemente. Era assim também que ele
se definia. Estou procurando ser
fiel a essas contradições, agrupando material de televisão, de arquivo familiar, de entrevistas dadas
pelo Gilberto a diferentes veículos, para compor essas facetas.
Folha - O seu cinema sempre
teve intenção documental. O sr.
praticamente fundou o neo-realismo no Brasil com "Rio 40
Graus" e "Rio Zona Norte". O sr.
continua vendo o cinema como
meio de conscientização, mesmo por meio da televisão?
Pereira dos Santos - O cinema
cumpre essa função histórica, é
instrumento de conscientização.
A obra de Gilberto Freyre procurou descolonizar o pensamento
brasileiro e é preciso, ainda, que
seja popularizada. Se conseguirmos fazer isso pela TV, então um
dos objetivos será alcançado. Numa época em que se fala em globalização e não se percebe que, na
realidade, nós é que estamos sendo globalizados, é preciso relembrar e rediscutir o pensamento de
Gilberto Freyre. A obra de Freyre
é básica para se entender o Brasil.
Folha - Ao sintetizar o contato
entre colonizadores e colonizados, Freyre insiste no livro que o
senhor de engenho se misturou
fecunda e poligamicamente
com as escravas, num exemplo
de convívio racial democrático.
Isso é polêmico na obra. Como o
sr. vai abordar essa questão?
Pereira dos Santos -Conto, no
roteiro, com o apoio de um grande conhecedor da obra de Gilberto Freyre, que é o professor Edson
Nery da Fonseca, que foi colaborador do Gilberto durante anos e
anos. Eu optei por não interpretar
o pensamento de Gilberto Freyre.
Vou tentar expô-lo na sua essência, traduzir o seu pensamento,
sobretudo o que ele chama de
"metarraça brasileira", ou seja, o
resultado da mestiçagem de raças
e culturas diferentes. Vou tentar
apresentar isso de uma maneira
neutra. Quero mostrar a explicação dele para o Brasil e espero que
esse pensamento possa ser exposto de modo cristalino. Ele não é o
único explicador do Brasil. Ele se
contrapõe e se complementa com
outros como Sergio Buarque de
Holanda e Caio Prado Júnior. Se
tudo der certo, gostaria de fazer
também um documentário sobre
a obra desses outros pensadores.
Folha - A sua cinematografia
dos anos 60 e 70 se afastou um
pouco do político e se aproximou mais do erótico. Para Freyre, o Brasil era um país em que a
sensualidade superava a racionalidade. Trabalhar com Freyre
uniria os lados de sua carreira?
Pereira dos Santos -Poxa, eu
acho que é exatamente isso. Gilberto Freyre quando escreveu
"Casa-Grande & Senzala" disse
ter tido um prazer enorme, erótico. Eu vou tomar emprestado essas palavras dele e tentar fazer um
filme chegando perto desse prazer que ele teve. Claro que não
vou tentar me igualar, mas gostaria muito de dividir esse prazer
erótico que ele sentiu.
Folha - Em 1982, Freyre criou o
termo Brasil "rurbano", para definir o atraso brasileiro. Seu cinema é nesse sentido freyriano?
Pereira dos Santos - Sim. Sempre procurei nos meus filmes
mostrar as contradições brasileiras. Concordo com Freyre no sentido de que o Brasil só seria moderno se entendesse a sua pluralidade cultural. Esse discurso agora
da globalização, de aderir a isso
ou aquilo, é difícil pensar numa
coisa só, numa homogeneidade.
Folha - O sr. acha que esse
"boom" comemorativo em função dos 500 anos do Brasil dá
margem a um ufanismo barato?
Pereira dos Santos -Tudo isso
que está surgindo em função dessas datas todas são um bom pretexto para se repensar certas coisas. Está surgindo um conjunto
de pesquisas, um reencontro com
o Brasil. "Casa-Grande & Senzala" é um livro que explica o Brasil.
O livro não é unimetodológico,
ele é plurimetodológico, não é
cronológico, é psicológico. É uma
busca do tempo perdido, como
em Proust, só que a busca do tempo perdido do Brasil (risos).
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