São Paulo, Sábado, 22 de Janeiro de 2000


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RESENHA DA SEMANA
Elogio do excêntrico

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


O que leva o austríaco Stefan Zweig (1881-1942) a incluir entre os "Momentos Decisivos da Humanidade" (um dos títulos que formam o conjunto de sua obra reunido pela Record) os últimos ímpetos criativos de Haendel e Goethe? Ou os últimos instantes da vida de Tolstói?
O que o leva a incluir, ao lado da descoberta do oceano Pacífico, da queda de Constantinopla, da batalha de Waterloo e da conquista do Pólo Sul, e dando-lhe a mesma importância histórica, o dia em que Dostoiévski escapou à morte diante de um pelotão de fuzilamento, amarrado a uma estaca e de olhos vendados?
No Brasil, o destino de Zweig que, junto com sua mulher, se suicidou em Petrópolis, em 1942, confrontado com o avanço do autoritarismo e da intolerância depois de uma longa fuga do nazismo (desde 1934), costuma ser mais conhecido do que sua obra.
Em contraposição à desilusão final da vida do escritor, seus textos revelam uma crença na arte acima de tudo, contra toda barbárie e decadência. Não uma arte burocrática, de museu ou academia, simples fonte de erudição, mas uma arte que sai da vida para voltar a ela num ciclo de renascimentos mútuos e constantes.
Uma arte que pode tanto ser efeito de uma ressurreição, como no caso de Dostoiévski ao escapar ao fuzilamento (quando "Nos seus lábios trêmulos/ Floresce o sorriso amarelo dos Karamazov") ou de Haendel ao voltar da morte, depois de um derrame, para compor o seu "Messias", quanto pode ser causa, reanimando o entusiasmo pela vida por meio da criação, como no caso de Goethe ao redescobrir a própria obra pouco antes de morrer.
"A gente só cria livros para ligar-se a outras pessoas e defender-se contra a implacável contraparte de toda a vida: a transitoriedade e o esquecimento", escreve Zweig no conto "O Livreiro Mendel", que faz parte da coletânea "Medo".
É o que o leva a incluir passagens da vida de Goethe, Dostoiévski, Tolstói ou Haendel entre os "Momentos Decisivos da Humanidade". E a descrever assim a morte do compositor alemão: "... morreu finalmente aquilo que em Georg Friedrich Haendel era mortal".
Para Zweig, a arte está ligada à imortalidade, porque é a resistência que cabe ao homem. É a exceção que luta contra a regra num mundo em que tudo converge inexoravelmente para a decadência e a morte.
Daí a cegueira da maioria diante das obras importantes: "Os contemporâneos raramente percebem a grandiosidade de um homem ou a grandeza de uma obra num primeiro instante", escreve Zweig em "O Gênio de uma Noite", a propósito de Rouget de Lisle, compositor de "A Marselhesa" ("Momentos Decisivos da Humanidade").
A maioria é a regra. E a arte sobrevive contra toda expectativa média, na exceção. É o que o homem da regra acha mais estranho e contra o que muitas vezes reage com repulsa.
Em "O Livreiro Mendel", Zweig representa essa exceção na figura de um judeu excêntrico, um pequeno vendedor de livros usados. Um prodígio da memória para títulos e autores, para quem "os fenômenos da existência (...) só começavam a ser reais quando fundidos em letras, reunidos e estilizados num livro".
Zweig faz o elogio do excêntrico contra a uniformidade. E é tentador concluir que, para ele, a verdadeira arte é a que causa estranhamento, não aquela que apazigua os espíritos diante das convenções: "Nele, pela primeira vez eu me aproximava do grande mistério de que todas as coisas especiais e superiores em nossa vida só são realizadas por concentração interior, por uma monomania sublime e sagradamente aparentada com a loucura", escreve sobre o livreiro Mendel.
Atraído pelas parábolas, assim como pelos mecanismos psicológicos, Zweig criou em "A Coleção Invisível" (outro conto da coletânea "Medo"), o personagem de um velho colecionador de arte que, cego, acredita ainda possuir as gravuras que acumulou ao longo da vida e que a família teve de vender para sobreviver à inflação alemã.
"Não posso lhe descrever como era fantasmal ver com ele aqueles cem ou duzentos pedaços de papel vazios (...), que na memória daquele trágico inocente eram tão extraordinariamente reais (...): a coleção invisível que (...), para aquele cego (...), ainda estava ali intacta, e, como a paixão de sua visão fosse tão arrebatadora, eu próprio quase começava a acreditar em tudo."
Uma ilusão em que, ao que parece, Stefan Zweig não conseguiu acreditar até o fim.


Avaliação:    


Livro: Medo
Quanto: R$ 30 (256 págs.)
Livro: Momentos Decisivos da Humanidade
Preço: R$ 30 (288 págs.)
Autor: Stefan Zweig
Editora: Record


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