|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RESENHA DA SEMANA
Elogio do excêntrico
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
O que leva o austríaco Stefan
Zweig (1881-1942) a incluir entre os "Momentos Decisivos da
Humanidade" (um dos títulos
que formam o conjunto de sua
obra reunido pela Record) os
últimos ímpetos criativos de
Haendel e Goethe? Ou os últimos instantes da vida de Tolstói?
O que o leva a incluir, ao lado
da descoberta do oceano Pacífico, da queda de Constantinopla, da batalha de Waterloo e
da conquista do Pólo Sul, e
dando-lhe a mesma importância histórica, o dia em que Dostoiévski escapou à morte diante de um pelotão de fuzilamento, amarrado a uma estaca e de
olhos vendados?
No Brasil, o destino de Zweig
que, junto com sua mulher, se
suicidou em Petrópolis, em
1942, confrontado com o avanço do autoritarismo e da intolerância depois de uma longa fuga do nazismo (desde 1934),
costuma ser mais conhecido do
que sua obra.
Em contraposição à desilusão final da vida do escritor,
seus textos revelam uma crença na arte acima de tudo, contra toda barbárie e decadência.
Não uma arte burocrática, de
museu ou academia, simples
fonte de erudição, mas uma arte que sai da vida para voltar a
ela num ciclo de renascimentos
mútuos e constantes.
Uma arte que pode tanto ser
efeito de uma ressurreição, como no caso de Dostoiévski ao
escapar ao fuzilamento (quando "Nos seus lábios trêmulos/
Floresce o sorriso amarelo dos
Karamazov") ou de Haendel
ao voltar da morte, depois de
um derrame, para compor o
seu "Messias", quanto pode ser
causa, reanimando o entusiasmo pela vida por meio da criação, como no caso de Goethe
ao redescobrir a própria obra
pouco antes de morrer.
"A gente só cria livros para ligar-se a outras pessoas e defender-se contra a implacável contraparte de toda a vida: a transitoriedade e o esquecimento",
escreve Zweig no conto "O Livreiro Mendel", que faz parte
da coletânea "Medo".
É o que o leva a incluir passagens da vida de Goethe, Dostoiévski, Tolstói ou Haendel
entre os "Momentos Decisivos
da Humanidade". E a descrever assim a morte do compositor alemão: "... morreu finalmente aquilo que em Georg
Friedrich Haendel era mortal".
Para Zweig, a arte está ligada
à imortalidade, porque é a resistência que cabe ao homem.
É a exceção que luta contra a
regra num mundo em que tudo converge inexoravelmente
para a decadência e a morte.
Daí a cegueira da maioria
diante das obras importantes:
"Os contemporâneos raramente percebem a grandiosidade de um homem ou a grandeza de uma obra num primeiro instante", escreve Zweig em
"O Gênio de uma Noite", a propósito de Rouget de Lisle, compositor de "A Marselhesa"
("Momentos Decisivos da Humanidade").
A maioria é a regra. E a arte
sobrevive contra toda expectativa média, na exceção. É o que
o homem da regra acha mais
estranho e contra o que muitas
vezes reage com repulsa.
Em "O Livreiro Mendel",
Zweig representa essa exceção
na figura de um judeu excêntrico, um pequeno vendedor de
livros usados. Um prodígio da
memória para títulos e autores,
para quem "os fenômenos da
existência (...) só começavam a
ser reais quando fundidos em
letras, reunidos e estilizados
num livro".
Zweig faz o elogio do excêntrico contra a uniformidade. E
é tentador concluir que, para
ele, a verdadeira arte é a que
causa estranhamento, não
aquela que apazigua os espíritos diante das convenções:
"Nele, pela primeira vez eu me
aproximava do grande mistério de que todas as coisas especiais e superiores em nossa vida só são realizadas por concentração interior, por uma
monomania sublime e sagradamente aparentada com a
loucura", escreve sobre o livreiro Mendel.
Atraído pelas parábolas, assim como pelos mecanismos
psicológicos, Zweig criou em
"A Coleção Invisível" (outro
conto da coletânea "Medo"), o
personagem de um velho colecionador de arte que, cego,
acredita ainda possuir as gravuras que acumulou ao longo
da vida e que a família teve de
vender para sobreviver à inflação alemã.
"Não posso lhe descrever como era fantasmal ver com ele
aqueles cem ou duzentos pedaços de papel vazios (...), que na
memória daquele trágico inocente eram tão extraordinariamente reais (...): a coleção invisível que (...), para aquele cego
(...), ainda estava ali intacta, e,
como a paixão de sua visão fosse tão arrebatadora, eu próprio
quase começava a acreditar em
tudo."
Uma ilusão em que, ao que
parece, Stefan Zweig não conseguiu acreditar até o fim.
Avaliação:
Livro: Medo
Quanto: R$ 30 (256 págs.)
Livro: Momentos Decisivos da
Humanidade
Preço: R$ 30 (288 págs.)
Autor: Stefan Zweig
Editora: Record
Texto Anterior: Gastronomia: Obra analisa a relação do álcool com os EUA Próximo Texto: Livro: Zweig é tão grande quanto "Magalhães" Índice
|