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MARCELO COELHO
Rembrandt, Genet e o homem do bigode encardido
Falei muito mal dos gordos
no artigo da semana passada. Não estou pedindo desculpas,
porque sei o que é pertencer ao time, e quando me olho no espelho
digo às vezes coisas piores. Verdade que fui cruel. Descrevendo a
população que, nesta época do
ano, apinha as praias paulistas,
falei de vesúvios de banha e de estranhas compactações da carne;
de espessuras de óleo e inchaços
de balão.
Saiu faz alguns meses, pela editora José Olympio, um belíssimo
livro do teatrólogo Jean Genet,
com tradução de Ferreira Gullar.
O livro é pequeno: menos de cem
páginas e dezenas de ilustrações.
Trata-se de um texto publicado
originalmente em 1958, na revista
"L'Express", sobre a pintura de
Rembrandt (1606-1669), acrescido de outros dois fragmentos de
Genet sobre o mestre flamengo.
Nas primeiras páginas do livro,
Genet destaca os retratos de gente
velha feitos por Rembrandt: "as
rugas são escrupulosamente marcadas, os pés-de-galinha, as pregas da pele, as verrugas...". Observa que toda a sensualidade de
Rembrandt ao pintar a riqueza
material -veludos, tapetes, baixelas- desaparece quando se
trata de pintar um rosto. Ele privilegiava os rostos "trabalhados
pela idade", que "parecem conter
um drama extremamente pesado, espesso", e os personagens cujos gestos, "suspensos, contidos,
são como um ciclone momentaneamente dominado".
A descrição de Genet parece excessivamente literária em alguns
momentos -e por isso mesmo o
autor a interrompe, com força e
intimidade inconfundíveis. Cito
um parágrafo.
"Agradável ao olhar ou não, a
decrepitude é real. E, por conseguinte, bela. E rica de... Você já teve uma ferida no cotovelo, por
exemplo, que tenha infeccionado?
Ela ganha uma crosta. Com a
unha, você a levanta. Debaixo, vê
os filamentos de pus que apodreceriam essa crosta se a infecção se
prolongasse. Na verdade, todo o
organismo trabalha para essa ferida. Cada centímetro quadrado
de um metacarpo ou de um lábio
de Mme. Trip (uma das retratadas por Rembrandt) significa a
mesma coisa."
Para Genet, o pintor que antes
se encantava pelo luxo e pela ornamentação irá aos poucos submetê-los "a um curioso tratamento: vai ao mesmo tempo exaltar as
suntuosidades convencionais e
descaracterizá-las de tal modo
que será impossível identificá-las.
Irá mais longe. O brilho que as faz
parecer preciosas será transferido
para as matérias mais miseráveis,
de modo a confundir tudo".
De modo que Rembrandt descobrirá, com o tempo, "que qualquer objeto possui sua própria
magnificência, de igual valor".
Mas isso não equivale a exaltar
tudo, do mais humilde ao mais
luxuoso, numa espécie de otimismo fenomênico, de democratismo
visual, de celebração objetiva.
Na interpretação de Jean Genet,
a infelicidade de Rembrandt ao
perder sua mulher, Saskia, terminaria fazendo com que sua pintura quisesse destruir a antiga vaidade, o antigo fascínio pela sensualidade e pela riqueza: trata-se
de representar o mundo, diz Genet, e ao mesmo tempo de torná-lo irreconhecível. Não estaríamos,
portanto, diante de uma espécie
de igualitarismo dos objetos, mas
sim de uma indiferenciação.
Algumas páginas adiante, mudamos de cenário. Genet está
num vagão imundo de terceira
classe, quando sente uma revelação súbita. O passageiro sentado
à sua frente estava lendo jornal.
De repente, seus olhares se cruzam.
"Atrás do que era visível nesse
homem (...), corpo e rosto sem
graça, feios, sob certos aspectos vis
mesmo: bigodes sujos, o que seria
pouco, mas duros, rígidos, os fios
plantados quase horizontalmente
acima da boca minúscula, boca
estragada, escarros que ele lançava por entre os joelhos no vagão já
sujo das baganas, papel, pedaços
de pão, enfim o que constituía naquele tempo a sujeira de um compartimento de terceira classe, pelo
olhar que mirava o meu, descobri, como num choque, uma espécie de identidade universal de todos os homens."
A percepção da feiúra -tanto
na arte de Rembrandt quanto na
vida real- leva Genet a uma forma de simpatia humana bastante
trágica e negativa. Estamos longe
aqui do entusiasmo iluminista
em torno da dignidade espiritual
e abstrata do homem; trata-se,
antes, de uma comunhão na nossa indignidade física e material...
Valeria comparar essas páginas
com um trecho parecido de Aldous Huxley, creio que em "Contraponto", onde o personagem,
também num vagão de trem, fica
nauseado quando vê o homem à
sua frente cuspindo e pisando sobre o material cuspido, a fim de
espalhá-lo no chão. Huxley olha
para cima: é fácil a gente se solidarizar em tese com os "despossuídos"... mas, na prática, que estômago!
Duas formas de negação do relacionamento humano estariam
em jogo nesses textos. Sendo um
"scholar and gentleman", Huxley
precisa tampar o nariz para preservar seu ideal humanista. Lúmpen e ladrão, Genet sente a universalidade humana como uma
ameaça, como uma lei bruta, até
mesmo animal: ele diz reencontrar o olhar daquele homem do
vagão em abatedouros, na cabeça
de carneiros empilhadas no mercado municipal...
São imagens de massacre, não
de confraternização, as evocadas
por Genet; seu texto deixa intuir,
talvez, o que há de sinistramente
"igualitário" em todo morticínio,
assim como o texto de Huxley
mostra o que há de ineficaz numa
simpatia abstrata pelos outros.
Da época em que esses textos foram escritos até agora passaram-se uns cinquenta anos. O pensamento progressista passou a insistir mais nas "diferenças" do que
na igualdade. Enquanto isso, a
sociedade de consumo vende a
ilusão de uma igualdade fotogênica: os corpos padronizados da
propaganda, cuja beleza atingiremos algum dia -daqui a muitos
verões, depois de tomar muitas
cervejas e sorvetes de creme. Isso é
que é utopia.
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