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São Paulo, quarta-feira, 22 de janeiro de 2003

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MARCELO COELHO

Rembrandt, Genet e o homem do bigode encardido

Falei muito mal dos gordos no artigo da semana passada. Não estou pedindo desculpas, porque sei o que é pertencer ao time, e quando me olho no espelho digo às vezes coisas piores. Verdade que fui cruel. Descrevendo a população que, nesta época do ano, apinha as praias paulistas, falei de vesúvios de banha e de estranhas compactações da carne; de espessuras de óleo e inchaços de balão.
Saiu faz alguns meses, pela editora José Olympio, um belíssimo livro do teatrólogo Jean Genet, com tradução de Ferreira Gullar. O livro é pequeno: menos de cem páginas e dezenas de ilustrações. Trata-se de um texto publicado originalmente em 1958, na revista "L'Express", sobre a pintura de Rembrandt (1606-1669), acrescido de outros dois fragmentos de Genet sobre o mestre flamengo.
Nas primeiras páginas do livro, Genet destaca os retratos de gente velha feitos por Rembrandt: "as rugas são escrupulosamente marcadas, os pés-de-galinha, as pregas da pele, as verrugas...". Observa que toda a sensualidade de Rembrandt ao pintar a riqueza material -veludos, tapetes, baixelas- desaparece quando se trata de pintar um rosto. Ele privilegiava os rostos "trabalhados pela idade", que "parecem conter um drama extremamente pesado, espesso", e os personagens cujos gestos, "suspensos, contidos, são como um ciclone momentaneamente dominado".
A descrição de Genet parece excessivamente literária em alguns momentos -e por isso mesmo o autor a interrompe, com força e intimidade inconfundíveis. Cito um parágrafo.
"Agradável ao olhar ou não, a decrepitude é real. E, por conseguinte, bela. E rica de... Você já teve uma ferida no cotovelo, por exemplo, que tenha infeccionado? Ela ganha uma crosta. Com a unha, você a levanta. Debaixo, vê os filamentos de pus que apodreceriam essa crosta se a infecção se prolongasse. Na verdade, todo o organismo trabalha para essa ferida. Cada centímetro quadrado de um metacarpo ou de um lábio de Mme. Trip (uma das retratadas por Rembrandt) significa a mesma coisa."
Para Genet, o pintor que antes se encantava pelo luxo e pela ornamentação irá aos poucos submetê-los "a um curioso tratamento: vai ao mesmo tempo exaltar as suntuosidades convencionais e descaracterizá-las de tal modo que será impossível identificá-las. Irá mais longe. O brilho que as faz parecer preciosas será transferido para as matérias mais miseráveis, de modo a confundir tudo".
De modo que Rembrandt descobrirá, com o tempo, "que qualquer objeto possui sua própria magnificência, de igual valor". Mas isso não equivale a exaltar tudo, do mais humilde ao mais luxuoso, numa espécie de otimismo fenomênico, de democratismo visual, de celebração objetiva.
Na interpretação de Jean Genet, a infelicidade de Rembrandt ao perder sua mulher, Saskia, terminaria fazendo com que sua pintura quisesse destruir a antiga vaidade, o antigo fascínio pela sensualidade e pela riqueza: trata-se de representar o mundo, diz Genet, e ao mesmo tempo de torná-lo irreconhecível. Não estaríamos, portanto, diante de uma espécie de igualitarismo dos objetos, mas sim de uma indiferenciação.
Algumas páginas adiante, mudamos de cenário. Genet está num vagão imundo de terceira classe, quando sente uma revelação súbita. O passageiro sentado à sua frente estava lendo jornal. De repente, seus olhares se cruzam.
"Atrás do que era visível nesse homem (...), corpo e rosto sem graça, feios, sob certos aspectos vis mesmo: bigodes sujos, o que seria pouco, mas duros, rígidos, os fios plantados quase horizontalmente acima da boca minúscula, boca estragada, escarros que ele lançava por entre os joelhos no vagão já sujo das baganas, papel, pedaços de pão, enfim o que constituía naquele tempo a sujeira de um compartimento de terceira classe, pelo olhar que mirava o meu, descobri, como num choque, uma espécie de identidade universal de todos os homens."
A percepção da feiúra -tanto na arte de Rembrandt quanto na vida real- leva Genet a uma forma de simpatia humana bastante trágica e negativa. Estamos longe aqui do entusiasmo iluminista em torno da dignidade espiritual e abstrata do homem; trata-se, antes, de uma comunhão na nossa indignidade física e material...
Valeria comparar essas páginas com um trecho parecido de Aldous Huxley, creio que em "Contraponto", onde o personagem, também num vagão de trem, fica nauseado quando vê o homem à sua frente cuspindo e pisando sobre o material cuspido, a fim de espalhá-lo no chão. Huxley olha para cima: é fácil a gente se solidarizar em tese com os "despossuídos"... mas, na prática, que estômago!
Duas formas de negação do relacionamento humano estariam em jogo nesses textos. Sendo um "scholar and gentleman", Huxley precisa tampar o nariz para preservar seu ideal humanista. Lúmpen e ladrão, Genet sente a universalidade humana como uma ameaça, como uma lei bruta, até mesmo animal: ele diz reencontrar o olhar daquele homem do vagão em abatedouros, na cabeça de carneiros empilhadas no mercado municipal...
São imagens de massacre, não de confraternização, as evocadas por Genet; seu texto deixa intuir, talvez, o que há de sinistramente "igualitário" em todo morticínio, assim como o texto de Huxley mostra o que há de ineficaz numa simpatia abstrata pelos outros.
Da época em que esses textos foram escritos até agora passaram-se uns cinquenta anos. O pensamento progressista passou a insistir mais nas "diferenças" do que na igualdade. Enquanto isso, a sociedade de consumo vende a ilusão de uma igualdade fotogênica: os corpos padronizados da propaganda, cuja beleza atingiremos algum dia -daqui a muitos verões, depois de tomar muitas cervejas e sorvetes de creme. Isso é que é utopia.


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