São Paulo, sexta-feira, 22 de março de 2002

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"O PORNÓGRAFO"

Filme não é sobre pornografia, mas sobre mudanças

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

O pornógrafo de que trata este filme não corresponde à imagem que se tem dessas pessoas. Não é o cafajeste que em geral se imagina, nem um depravado ou coisa assim.
Jacques (Jean-Pierre Léaud) é um cineasta, apenas. Começou a fazer pornôs no fim dos anos 60, convencido de que promovia a anarquia e o prazer. Seu imaginário é formado na rebelião de Maio de 68. Imagina-se -ele não fala a respeito- que deve ter sido um leitor de Sade e Marcuse, de Anais Nin e Henry Miller.
No entanto, quando o filme de Bertrand Bonello o reencontra, Jacques é um homem derrotado. Está voltando, por falta de dinheiro, à atividade que abandonou em 1984. No set de filmagem, mal se preocupa com o que acontece. Preocupa-se em reencontrar o filho, que não vê há anos.
Aos poucos nos damos conta de que "O Pornógrafo" não é um filme sobre a pornografia, mas sobre as mudanças no mundo, de 1968 para cá. A trajetória de Jacques é ilustrativa: num primeiro momento, é um amador; em seguida, profissionaliza-se. Institucionaliza-se, por assim dizer.
A partir de 1984, silencia: o mundo libertário que imaginou foi derrotado. A pornografia já não tem outro sentido, exceto o comercial. Entretanto, existe o estigma, e ele permanece.
Uma jornalista procura Jacques com insistência de voyeur. Pergunta sobre seus filmes. Mas não é de seus filmes que o pornógrafo quer falar, e sim de sua vida. "Eu falo da minha vida, você pergunta sobre minha carreira", diz. Não se sente ofendido pelas perguntas "obscenas". Elas lhe dão apenas a dimensão da derrota de suas idéias e de sua solidão.
No reencontro com Joseph, seu filho, as coisas não são muito diferentes: Joseph o perdoa por ser quem é (quando um filho perdoa ao pai, o pai se torna filho do próprio filho, dirá Bonello).
Mas quem é esse pornógrafo a rigor? Como evita que o filme ceda à psicologia, nós nunca saberemos. Jacques será seu silêncio, sua tristeza, seu rosto amargo.
O perdão do filho não deixa de ser sintomático: o mundo não perdoa esse cineasta. Porém sabemos desde o primeiro fotograma que existe nele algo de sublime. Estamos diante de um verdadeiro "cineasta maldito", e se isso acontece deve-se ao fato de tratar diretamente com o corpo.
Quem não o perdoa por isso é a sociedade, não o cinema. O cinema, como distração dominical, talvez seja apenas um mal-entendido: não estão na sua natureza os bons modos nem a decência. Bertrand Bonello parece dizê-lo explicitamente, quando mostra trechos de filmes de João César Monteiro e Carl T. Dreyer.
Poderia mostrar algum trecho de Robert Bresson. Bem mais do que alguns imitadores recentes de Bresson, Bonello exibe corpos para melhor mostrar-lhes as almas. Nosso pornógrafo talvez seja, nesse sentido, um personagem exemplar: alma do anarquismo radical de 68, penando no mundo organizado, hierarquizado.
Talvez nosso pornógrafo tenha bons motivos para estar tão sorumbático. Ele vem do tempo em que se dizia "faça amor, não faça a guerra". O pornô saiu de moda. Voltamos ao tempo dos filmes de guerra. Quem tiver alguma dúvida pergunte a George W. Bush ou ao general Sharon.


O Pornógrafo
Le Pornographe    
Direção: Bertrand Bonello
Produção: França/Canadá, 2001
Com: Jean-Pierre Léaud, Dominic Blanc
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco e no Cineclube DirecTV




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