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"O PORNÓGRAFO"
Filme não é sobre pornografia, mas sobre mudanças
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
O pornógrafo de que trata
este filme não corresponde à
imagem que se tem dessas pessoas. Não é o cafajeste que em geral se imagina, nem um depravado ou coisa assim.
Jacques (Jean-Pierre Léaud) é
um cineasta, apenas. Começou a
fazer pornôs no fim dos anos 60,
convencido de que promovia a
anarquia e o prazer. Seu imaginário é formado na rebelião de Maio
de 68. Imagina-se -ele não fala a
respeito- que deve ter sido um
leitor de Sade e Marcuse, de Anais
Nin e Henry Miller.
No entanto, quando o filme de
Bertrand Bonello o reencontra,
Jacques é um homem derrotado.
Está voltando, por falta de dinheiro, à atividade que abandonou em
1984. No set de filmagem, mal se
preocupa com o que acontece.
Preocupa-se em reencontrar o filho, que não vê há anos.
Aos poucos nos damos conta de
que "O Pornógrafo" não é um filme sobre a pornografia, mas sobre as mudanças no mundo, de
1968 para cá. A trajetória de Jacques é ilustrativa: num primeiro
momento, é um amador; em seguida, profissionaliza-se. Institucionaliza-se, por assim dizer.
A partir de 1984, silencia: o
mundo libertário que imaginou
foi derrotado. A pornografia já
não tem outro sentido, exceto o
comercial. Entretanto, existe o estigma, e ele permanece.
Uma jornalista procura Jacques
com insistência de voyeur. Pergunta sobre seus filmes. Mas não
é de seus filmes que o pornógrafo
quer falar, e sim de sua vida. "Eu
falo da minha vida, você pergunta
sobre minha carreira", diz. Não se
sente ofendido pelas perguntas
"obscenas". Elas lhe dão apenas a
dimensão da derrota de suas
idéias e de sua solidão.
No reencontro com Joseph, seu
filho, as coisas não são muito diferentes: Joseph o perdoa por ser
quem é (quando um filho perdoa
ao pai, o pai se torna filho do próprio filho, dirá Bonello).
Mas quem é esse pornógrafo a
rigor? Como evita que o filme ceda à psicologia, nós nunca saberemos. Jacques será seu silêncio, sua
tristeza, seu rosto amargo.
O perdão do filho não deixa de
ser sintomático: o mundo não
perdoa esse cineasta. Porém sabemos desde o primeiro fotograma
que existe nele algo de sublime.
Estamos diante de um verdadeiro
"cineasta maldito", e se isso acontece deve-se ao fato de tratar diretamente com o corpo.
Quem não o perdoa por isso é a
sociedade, não o cinema. O cinema, como distração dominical,
talvez seja apenas um mal-entendido: não estão na sua natureza os
bons modos nem a decência. Bertrand Bonello parece dizê-lo explicitamente, quando mostra trechos de filmes de João César
Monteiro e Carl T. Dreyer.
Poderia mostrar algum trecho
de Robert Bresson. Bem mais do
que alguns imitadores recentes de
Bresson, Bonello exibe corpos para melhor mostrar-lhes as almas.
Nosso pornógrafo talvez seja, nesse sentido, um personagem
exemplar: alma do anarquismo
radical de 68, penando no mundo
organizado, hierarquizado.
Talvez nosso pornógrafo tenha
bons motivos para estar tão sorumbático. Ele vem do tempo em
que se dizia "faça amor, não faça a
guerra". O pornô saiu de moda.
Voltamos ao tempo dos filmes de
guerra. Quem tiver alguma dúvida pergunte a George W. Bush ou
ao general Sharon.
O Pornógrafo
Le Pornographe
Direção: Bertrand Bonello
Produção: França/Canadá, 2001
Com: Jean-Pierre Léaud, Dominic Blanc
Quando: a partir de hoje no Espaço
Unibanco e no Cineclube DirecTV
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