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CONTARDO CALLIGARIS
O diálogo contra o conflito
Muitos leitores me escreveram comentando a coluna
de quinta passada, "Carta aberta
a Silvio Santos", e o encontro de
domingo entre Silvio Santos e Zé
Celso. Agradeço a todos.
Em sua maioria, os que comentam o encontro festejam o acontecido, sem necessariamente tomar
partido: o fato em si lhes parece
uma boa notícia por ser uma vitória do diálogo contra o conflito.
Compartilho esse sentimento.
Estou um pouco cansado de
conflitos. E aparentemente não
sou o único. Não me falta a vontade de lutar pelas coisas que importam. Mas parece que o conflito
se tornou a maneira imediata de
perceber o mundo.
Não é de estranhar que seja assim. Minha geração cresceu com
as convicções seguintes: o drama
social se entende pela luta entre
classes ou interesses opostos, e o
drama individual se entende pela
luta entre desejos contrastantes
ou entre os desejos e as forças que
os reprimem.
A visão do mundo como campo
de batalha não é falsa, longe disso. Mas, às vezes, ela funciona como uma forma de preguiça, pela
qual preferimos o enfrentamento,
por doloroso que seja, ao incômodo de entender, aceitar as diferenças e trocar figurinhas.
Essa constatação é comum a alguns dos melhores pensadores das
últimas décadas do século passado. Vários defenderam a idéia de
que a razão (que, em princípio,
todos compartilhamos) resolveria
muitos conflitos pelo diálogo. Isso
se fizéssemos o esforço de dialogar.
Infelizmente, de Kosovo ao Iraque, a voz da razão ressoa como
um réquiem abafado pelas explosões e pelos gritos de agonia. Parece que somos todos racionais, mas
nem por isso somos razoáveis. Na
hora do vamos ver, gostamos de
mostrar os dentes.
Se a razão não basta para suspender o conflito aberto, fazer
apelo a quê?
À força de andar pelo mundo e
escutar meus semelhantes, uma
coisa aprendi. Aquém das diferenças, de casta, de classe, de status, de ideais e de princípios, temos, sim, algo em comum: a alegria ou a tristeza das paixões, a
desolação e o medo da vida que
passa e acaba, os prazeres da
amizade, a decepção das esperanças frustradas e a euforia das que,
por mérito ou sorte, são recompensadas. Em suma, compartilhamos a experiência concreta da
vida.
Cuidado: não aposto só na compreensão ou na compaixão. Sabemos que o outro está escrevendo
uma carta de amor parecida com
a nossa, mas nem sempre isso
basta para que não joguemos granadas na trincheira da frente. É
difícil renunciar à careta do inimigo jurado, pois ela nos proporciona o conforto de uma identidade clara e definida. Eu sou assim, o outro é assado. Só falta assá-lo mesmo, não é?
Mas a vida concreta oferece
mais um recurso: sua sabedoria
prática. Nela, quase sempre, os
pretensos inimigos inventam e
negociam, a cada dia, jeitos de
baixar as máscaras e de habitar
as mesmas ruas.
Vamos ao caso que nos interessa. Alguns leitores se disseram
preocupados com a perspectiva de
que a modernização do Bexiga
acabe com a alma do bairro. Outros, ao contrário, preocupados
com a perspectiva de que os obstáculos à mesma modernização
condenem o bairro ao atraso e à
pobreza.
Não sei qual será o futuro do
diálogo que começou domingo.
Mas, se me meti, é bem porque
acho que o conflito é, em grande
parte, abstrato, ou seja, que a
oposição transforma ambos os lados em caricaturas desnecessárias. Não acredito que Zé Celso seja nostálgico do cartão-postal de
um Bexiga pitoresco e miserável,
como não acredito que Silvio
Santos deseje um Bexiga sem alma, pesadelo extraído de um filme de Godard. Acredito, ao contrário, que o Bexiga de amanhã
possa ser uma mistura de ousadia
urbana e história, cinemas de arte e não de arte, padarias e fast
food, botecos e pizzarias pronta-entrega, shopping center e lojinhas, teatros de vaudeville e arenas populares antropofágicas. Em
suma, um bairro com a cara e as
contradições da gente.
Jacqueline (dez anos) é uma das
atrizes mais jovens e mais talentosas do teatro Oficina. Algum
tempo atrás, durante um ensaio,
Zé Celso pediu a Jacqueline que
ela encenasse uma grande alegria
e, para ajudá-la, lhe sugeriu que
pensasse em algo muito prazeroso. Jacqueline se esquivava, e Zé
Celso insistiu: "Qual é a coisa que
você mais gosta?". "Um McDonald's", respondeu Jacqueline,
para a hilaridade geral. Zé Celso
não hesitou: "Então pense no
McDonald's e encene".
Pois é, se Jacqueline pode encenar alegria pensando num Big
Mac, por que, no Bexiga de amanhã, não coabitariam o teatro
Oficina e a modernidade do projeto de Silvio Santos? Afinal, elas
já coabitam concretamente em
Jacqueline e, de fato, em todos
nós.
Alguns me perguntaram qual
foi minha função nesta história.
Respondo com a observação de
uma leitora, Lavínia Pannunzio,
que, ao mandar seu abraço, retomou assim minha carta de quinta
passada: "Você foi o palhaço com
o megafone, abrindo caminhos
pela cidade". Não podia aspirar a
maior elogio.
A Silvio Santos vão meus agradecimentos mais sinceros: sua visita ao Oficina satisfez meu pedido de criança.
P.S.: No domingo passado, às
16h, eu devia estar na Bienal do
Livro para lançar "Terra de Ninguém", uma coletânea destas colunas. Peço desculpa por não ter
honrado o compromisso: quase
no mesmo horário, aconteceu o
encontro entre Silvio Santos e Zé
Celso, no Teatro Oficina.
@ - ccalligari@uol.com.br
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