São Paulo, sábado, 22 de maio de 2004

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RODAPÉ

Inventário de perdas e danos

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Nas últimas décadas, surgiram muitos "romances de geração", que sintetizam as experiências, sonhos e frustrações de uma época. Dois exemplos: "Zero", de Ignácio de Loyola Brandão, e "Feliz Ano Velho", de Marcelo Rubens Paiva, que correspondem aos anos 70 e 80. "O Fantasma de Luis Buñuel", de Maria José Silveira, se enquadra nesse registro, com a diferença de que se trata aqui de um relato que compreende várias gerações em uma, graças ao inteligente dispositivo narrativo montado pela autora.
O marco zero do romance é dezembro de 1968, quando cinco amigos se reúnem em Brasília às vésperas do Ato Institucional nš 5 (decreto que suspendeu os direitos e garantias individuais e deu início ao período mais repressivo da ditadura iniciada em 1964).
Entre eles, alguns pontos em comum: são universitários, amantes do cinema e apaixonadamente engajados em questões políticas. A partir daí, cada capítulo é narrado do ponto de vista de uma personagem e de um momento específico, com intervalos de dez anos.
O trauma do AI-5 é contado por Edu, no dia em que está prestes a entrar na clandestinidade. No capítulo seguinte, ambientado em 1978 e narrado pelo homossexual Tadeu, o leitor fica sabendo que Edu morreu na luta armada, após ser preso e torturado.
Na terceira parte, que se passa em 1988, é Dina quem recorda sua experiência de militância e exílio e nos informa que Tadeu morreu de Aids. No quarto capítulo, em 1998, o cineasta frustrado Tonho faz um balanço dos ressentimentos e traições pessoais que precipitaram a lenta agonia dos ideais dos anos 60.
Dentro desse cronograma narrativo, o último capítulo aponta para o encontro que os "sobreviventes" deveriam ter em 2008. Esse encontro, porém, é abortado por uma carta em que a artista plástica Esmeralda faz um "inventário de nossas perdas e danos" e revela a existência de um filho que a reata à juventude -mas que também a liberta desse acerto de contas com o passado.
Nenhum dos fatos revelados acima compromete o prazer de ler esse romance que resgata saborosamente comportamentos e gírias de época (expressões como "desbunde", "sem grilo", "gandaia", "estar superbem", "esquerda festiva").
O que importa realmente é que Maria José Silveira conseguiu fazer um panorama de 50 anos de Brasil mesclando habilmente fatos jornalísticos com a memória de suas personagens, que se tornam ao mesmo tempo singulares (em benefício da ficção) e exemplares (em benefício da história).
Assim, a infância de Edu, no "canteiro de obras" do que seria Brasília, é repleta de imagens líricas do Planalto Central, mas também mostra as grandezas e misérias dessa "saga moderna" que foi a construção da capital, com os candangos pagando com a vida o preço das utopias modernizantes.
No outro extremo do arco temporal, a melancólica metamorfose dos antigos militantes da revolução planetária em ambientalistas, publicitários e artistas pós-modernos é contrabalançada pela singularidade com que cada personagem mantém um "pacto com o lado escuro do mundo", a memória de humilhações infantis e uma espécie de consciência culpada por ter substituído a antiga solidariedade estudantil por "amizades de conveniência".
Em nenhum momento o romance é nostálgico. Aliás, é por esse viés que se entende a referência do título ao cineasta de "O Cão Andaluz". Em dado trecho, as personagens dizem em uníssono: "Buñuel não tinha complacências com nada nem ninguém. Ele não fazia concessões, ele fazia Arte. Afrontava não só os grandes sistemas, as abstrações, mas também a moral comezinha do dia-a-dia".
Maria José Silveira não parece preocupada em "fazer Arte". Seu romance tem linguagem quase jornalística (embora derivando às vezes para um incômodo "papo cabeça"); sua maior ambição é fazer uma crítica das ilusões de sua geração: "Eu tinha 20 anos. Não me venham dizer que é a mais bela idade da vida". A frase é do escritor francês Paul Nizan; poderia ser a epígrafe de "O Fantasma de Luis Buñuel".


O Fantasma de Luis Buñuel
   
Autora: Maria José Silveira
Editora: W11
Quanto: R$ 41,50 (336 págs.)



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