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RODAPÉ
Inventário de perdas e danos
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Nas últimas décadas, surgiram muitos "romances de
geração", que sintetizam as experiências, sonhos e frustrações de
uma época. Dois exemplos: "Zero", de Ignácio de Loyola Brandão, e "Feliz Ano Velho", de Marcelo Rubens Paiva, que correspondem aos anos 70 e 80. "O Fantasma de Luis Buñuel", de Maria
José Silveira, se enquadra nesse
registro, com a diferença de que se
trata aqui de um relato que compreende várias gerações em uma,
graças ao inteligente dispositivo
narrativo montado pela autora.
O marco zero do romance é dezembro de 1968, quando cinco
amigos se reúnem em Brasília às
vésperas do Ato Institucional nš 5
(decreto que suspendeu os direitos e garantias individuais e deu
início ao período mais repressivo
da ditadura iniciada em 1964).
Entre eles, alguns pontos em comum: são universitários, amantes
do cinema e apaixonadamente
engajados em questões políticas.
A partir daí, cada capítulo é narrado do ponto de vista de uma personagem e de um momento específico, com intervalos de dez anos.
O trauma do AI-5 é contado por
Edu, no dia em que está prestes a
entrar na clandestinidade. No capítulo seguinte, ambientado em
1978 e narrado pelo homossexual
Tadeu, o leitor fica sabendo que
Edu morreu na luta armada, após
ser preso e torturado.
Na terceira parte, que se passa
em 1988, é Dina quem recorda sua
experiência de militância e exílio e
nos informa que Tadeu morreu
de Aids. No quarto capítulo, em
1998, o cineasta frustrado Tonho
faz um balanço dos ressentimentos e traições pessoais que precipitaram a lenta agonia dos ideais
dos anos 60.
Dentro desse cronograma narrativo, o último capítulo aponta
para o encontro que os "sobreviventes" deveriam ter em 2008. Esse encontro, porém, é abortado
por uma carta em que a artista
plástica Esmeralda faz um "inventário de nossas perdas e danos" e revela a existência de um filho que a reata à juventude -mas
que também a liberta desse acerto
de contas com o passado.
Nenhum dos fatos revelados
acima compromete o prazer de
ler esse romance que resgata saborosamente comportamentos e
gírias de época (expressões como
"desbunde", "sem grilo", "gandaia", "estar superbem", "esquerda festiva").
O que importa realmente é que
Maria José Silveira conseguiu fazer um panorama de 50 anos de
Brasil mesclando habilmente fatos jornalísticos com a memória
de suas personagens, que se tornam ao mesmo tempo singulares
(em benefício da ficção) e exemplares (em benefício da história).
Assim, a infância de Edu, no
"canteiro de obras" do que seria
Brasília, é repleta de imagens líricas do Planalto Central, mas também mostra as grandezas e misérias dessa "saga moderna" que foi
a construção da capital, com os
candangos pagando com a vida o
preço das utopias modernizantes.
No outro extremo do arco temporal, a melancólica metamorfose
dos antigos militantes da revolução planetária em ambientalistas,
publicitários e artistas pós-modernos é contrabalançada pela
singularidade com que cada personagem mantém um "pacto
com o lado escuro do mundo", a
memória de humilhações infantis
e uma espécie de consciência culpada por ter substituído a antiga
solidariedade estudantil por
"amizades de conveniência".
Em nenhum momento o romance é nostálgico. Aliás, é por
esse viés que se entende a referência do título ao cineasta de "O Cão
Andaluz". Em dado trecho, as
personagens dizem em uníssono:
"Buñuel não tinha complacências
com nada nem ninguém. Ele não
fazia concessões, ele fazia Arte.
Afrontava não só os grandes sistemas, as abstrações, mas também a
moral comezinha do dia-a-dia".
Maria José Silveira não parece
preocupada em "fazer Arte". Seu
romance tem linguagem quase
jornalística (embora derivando às
vezes para um incômodo "papo
cabeça"); sua maior ambição é fazer uma crítica das ilusões de sua
geração: "Eu tinha 20 anos. Não
me venham dizer que é a mais bela idade da vida". A frase é do escritor francês Paul Nizan; poderia
ser a epígrafe de "O Fantasma de
Luis Buñuel".
O Fantasma de Luis Buñuel
Autora: Maria José Silveira
Editora: W11
Quanto: R$ 41,50 (336 págs.)
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