São Paulo, sábado, 22 de maio de 2010

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ANÁLISE

Personagens de Roth são reféns dos próprios corpos

Questão de fundo existencial na obra de autor norte-americano é ancorada na metonímia para construir uma gramática de seres humanos aos pedaços

MARCOS FLAMÍNIO PERES
DA REPORTAGEM LOCAL

Mais do que a simples superexposição do corpo, há em Philip Roth uma gramática do corpo em pedaços, descendente de longa tradição literária e imagística -de Ticiano a Géricault e Courbet.
Leitor de psicanálise, Roth vai direto ao(s) ponto(s): ao falo, em "O Complexo de Portnoy", ao escroto, em "A Marca Humana", ao seio esquerdo, em "O Animal Agonizante".
Seus personagens são reféns de seus corpos: o superexcitado de Alexandre Portnoy, o quase branco de Coleman Silk -mas identificado como negro ao se despir diante de uma prostituta em um bordel de Norfolk- ou àqueles em franca degradação dos romances de velhice, como "Homem Comum" e "Fantasma Sai de Cena".
São vidas inteiras dependentes de uma única parte, que define a relação delas consigo mesmas e com o outro. Está aí a chave estrutural das narrativas de Roth: a questão de fundo existencial é fortemente ancorada numa das figuras centrais da retórica clássica, que é a metonímia, ou a parte pelo todo.
Roth a utiliza bem e à exaustão, e não por acaso Coleman Silk, protagonista de "A Marca Humana", leciona tragédia grega, e a epígrafe do livro é tomada do "Édipo Rei", de Sófocles.
O sentido da existência também se revela no seio canceroso da Consuelo de "O Animal Agonizante", implorando ao antigo amante: "Quero que você apalpe o meu câncer". E conclui: "Estamos nadando, afundando no tempo, até que por fim nos afogamos e sumimos".
Contudo é nas obras de grande fatura que Roth explora todo o potencial dessa figura. Por exemplo, em "O Teatro de Sabbath", em que o corpo transcende o corpo e se torna ideologia -ou seu fracasso.
Assim, quando Mickey Sabbath cheira desesperadamente as calcinhas da filha do velho amigo que o hospeda, ele abre mão do prazer do corpo real em troca do tecido delicado e cheiroso. Aqui o corpo não está mais referido por uma parte de si mesmo, mas por um simples objeto fetichizado.
O ápice metonímico ocorre na cena final: a bandeira norte-americana surge enrolada e enlameada em torno do corpo degradado do protagonista, um "loser". Um pedaço de pano colorido e estrelado, que deveria simbolizar os ideais de uma nação de 300 milhões de pessoas, escancara o fracasso das aspirações libertárias dos anos 1960.
Agora o vazio não é somente de uma existência, mas de toda uma geração.


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