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Tarantino esconde brilho em 'Jackie'
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Certas características que ajudaram a fazer a glória instantânea de
Quentin Tarantino são as que pesam contra "Jackie Brown".
Ele consagrou coisas como
gângsteres que conversam a respeito de hambúrgueres enquanto
se dirigem à casa do sujeito que
matarão ("Pulp Fiction").
Nos acostumamos a ver o crime
e a vida confundidos em seus filmes, como se tirar a vida fosse um
gesto tão corriqueiro quanto comer um sanduíche. À parte o efeito de humor de sequências como
essa, os primeiros filmes do cineasta têm a virtude do inesperado, da originalidade no tratamento do crime e dos criminosos.
Do momento em que troca a
"pulp fiction" por uma trama sólida, no entanto, o tratamento
"casual", a informalidade acentuada, tendem a frear o desenvolvimento da história.
"Jackie Brown" gira em torno
de uma aeromoça negra (Pam
Grier) pilhada por dois policiais
(Michael Keaton e Michael Bowen) quando trazia dinheiro ilegal
do México para Ordell (Samuel L.
Jackson), um traficante de armas.
Quarentona, ameaçada de perder o emprego e ser condenada à
prisão, Jackie bola um plano para
trazer o dinheiro de Ordell do exterior, fingindo ao mesmo tempo
colaborar com ele e com a polícia.
Seu objetivo, no entanto, é ficar
com a bolada -com a ajuda de
um agente de fiança (Robert Foster) que se apaixona por ela- e
jogar Ordell contra a polícia.
Na mesma proporção em que esse xadrez baseado em "Ponche de
Rum", de Emore Leonard, é interessante e bem-articulado, o espectador se ressentirá das informalidades que se acumulam na
trama, sobretudo no início.
Exemplo: o machista Ordell oferece uma de suas mulheres (Bridget Fonda) ao sócio (De Niro), recém-saído da prisão. Os dois transam. Então, a garota vira-se para
De Niro e diz algo como: "Agora a
gente pode se conhecer".
Maneira de notar que o sexo e a
vida tornaram-se instâncias separadas, sem dúvida, como se o sexo
fosse um instinto da mesma ordem que a fome, digamos.
Inúmeras vezes, Tarantino entupirá o filme dessas casualidades,
que no caso têm a função de esticar o papel de dois atores importantes (De Niro e Fonda), que não
chegam a se integrar ao roteiro.
Em outros momentos, Samuel L.
Jackson também se dedicará ao
exercício do papo-furado sobre si
mesmo e suas atividades.
Curiosamente, também o personagem de Jackson não crescerá ao
longo do filme. Os que realmente
se destacam são Jackie Brown e o
agente -não por acaso, aqueles
que mais sabem manter silêncio e
segredo sobre si mesmos nesse
mundo de falastrões.
É verdade que "Jackie Brown"
depois desenvolve-se bem, evita as
sangueiras gratuitas de outros filmes de Tarantino, procura concentrar-se na intriga e sobe consideravelmente.
Isso se deve, em grande parte, ao
talento de Tarantino. Basta ver o
longo plano de abertura: estranho,
discreto, ora ágil, ora estático e capaz de introduzir a personagem e
seu mundo ao espectador com
fluência, desenvoltura, elegância e
eficácia invejáveis.
É disso que vive, substancialmente, "Jackie Brown": desse talento natural de Tarantino, que
aqui parece se apresentar em um
momento de transição.
Já não é mais o menino prodígio
do início, ainda não é um narrador original (a idéia de, a horas
tantas, narrar uma parte da história várias vezes, a partir de vários
pontos de vista, parece vir em linha reta de "O Grande Golpe",
de Stanley Kubrick).
Mas, entre o brilhantismo algo
superficial de "Pulp Fiction" e
certos equívocos de "Jackie
Brown", existe um salto. Embora
esse salto possa decepcionar a
quem espera pelo Tarantino de
sempre, não é impossível ver aí o
início de uma evolução, de um
aprofundamento interessante.
Filme: Jackie Brown
Produção: EUA, 1997
Com: Pam Grier, Samuel L. Jackson
Quando: a partir de hoje, nos cines Gemini
1, Belas Artes - sala Mário de Andrade,
Butantã 3, Estação Lumière 1 e Cinearte 1
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