São Paulo, sexta, 22 de maio de 1998

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Tarantino esconde brilho em 'Jackie'

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Certas características que ajudaram a fazer a glória instantânea de Quentin Tarantino são as que pesam contra "Jackie Brown".
Ele consagrou coisas como gângsteres que conversam a respeito de hambúrgueres enquanto se dirigem à casa do sujeito que matarão ("Pulp Fiction").
Nos acostumamos a ver o crime e a vida confundidos em seus filmes, como se tirar a vida fosse um gesto tão corriqueiro quanto comer um sanduíche. À parte o efeito de humor de sequências como essa, os primeiros filmes do cineasta têm a virtude do inesperado, da originalidade no tratamento do crime e dos criminosos.
Do momento em que troca a "pulp fiction" por uma trama sólida, no entanto, o tratamento "casual", a informalidade acentuada, tendem a frear o desenvolvimento da história.
"Jackie Brown" gira em torno de uma aeromoça negra (Pam Grier) pilhada por dois policiais (Michael Keaton e Michael Bowen) quando trazia dinheiro ilegal do México para Ordell (Samuel L. Jackson), um traficante de armas.
Quarentona, ameaçada de perder o emprego e ser condenada à prisão, Jackie bola um plano para trazer o dinheiro de Ordell do exterior, fingindo ao mesmo tempo colaborar com ele e com a polícia.
Seu objetivo, no entanto, é ficar com a bolada -com a ajuda de um agente de fiança (Robert Foster) que se apaixona por ela- e jogar Ordell contra a polícia.
Na mesma proporção em que esse xadrez baseado em "Ponche de Rum", de Emore Leonard, é interessante e bem-articulado, o espectador se ressentirá das informalidades que se acumulam na trama, sobretudo no início.
Exemplo: o machista Ordell oferece uma de suas mulheres (Bridget Fonda) ao sócio (De Niro), recém-saído da prisão. Os dois transam. Então, a garota vira-se para De Niro e diz algo como: "Agora a gente pode se conhecer".
Maneira de notar que o sexo e a vida tornaram-se instâncias separadas, sem dúvida, como se o sexo fosse um instinto da mesma ordem que a fome, digamos.
Inúmeras vezes, Tarantino entupirá o filme dessas casualidades, que no caso têm a função de esticar o papel de dois atores importantes (De Niro e Fonda), que não chegam a se integrar ao roteiro.
Em outros momentos, Samuel L. Jackson também se dedicará ao exercício do papo-furado sobre si mesmo e suas atividades.
Curiosamente, também o personagem de Jackson não crescerá ao longo do filme. Os que realmente se destacam são Jackie Brown e o agente -não por acaso, aqueles que mais sabem manter silêncio e segredo sobre si mesmos nesse mundo de falastrões.
É verdade que "Jackie Brown" depois desenvolve-se bem, evita as sangueiras gratuitas de outros filmes de Tarantino, procura concentrar-se na intriga e sobe consideravelmente.
Isso se deve, em grande parte, ao talento de Tarantino. Basta ver o longo plano de abertura: estranho, discreto, ora ágil, ora estático e capaz de introduzir a personagem e seu mundo ao espectador com fluência, desenvoltura, elegância e eficácia invejáveis.
É disso que vive, substancialmente, "Jackie Brown": desse talento natural de Tarantino, que aqui parece se apresentar em um momento de transição.
Já não é mais o menino prodígio do início, ainda não é um narrador original (a idéia de, a horas tantas, narrar uma parte da história várias vezes, a partir de vários pontos de vista, parece vir em linha reta de "O Grande Golpe", de Stanley Kubrick).
Mas, entre o brilhantismo algo superficial de "Pulp Fiction" e certos equívocos de "Jackie Brown", existe um salto. Embora esse salto possa decepcionar a quem espera pelo Tarantino de sempre, não é impossível ver aí o início de uma evolução, de um aprofundamento interessante.

Filme: Jackie Brown
Produção: EUA, 1997 Com: Pam Grier, Samuel L. Jackson Quando: a partir de hoje, nos cines Gemini 1, Belas Artes - sala Mário de Andrade, Butantã 3, Estação Lumière 1 e Cinearte 1


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