|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TEATRO
Churchill faz rir e pensar com o "absurdo'
NELSON DE SÁ
da Reportagem Local
Derek, um homem que busca
uma mãe, entre várias, diz em inglês a uma delas: "Blue did blue
you blue meet blue other. Blue
glad blue all blue blue well. Maybe
it's time to blue a move".
"Blue" ou triste, em inglês, ou
azul, é a palavra que, aos poucos,
corrompeu o diálogo, o discurso.
Tomou conta. É um vírus.
Derek havia criado, supostamente, um golpe contra velhinhas.
Ele se faz passar por filho delas.
Escolhe as que decidiram doar um
filho. Forja documentos e se faz
passar pelo filho.
Seria, diz ele a certa altura, uma
forma de tirar dinheiro delas. Mas
não é, afinal. Derek é uma "coisa
triste" atrás de uma mãe.
Nada é claro, neste texto "absurdo" que é "Blue Kettle", o segundo de dois textos curtos reunidos sob o título "Blue Heart", coração triste, de Caryl Churchill.
A peça, dada como a melhor de
97 pelo jornal inglês "The Independent", fez duas apresentações
em São Paulo, terça e quarta-feira,
no Youth Arts Festival. Foi uma
chance de ver o melhor da dramaturgia inglesa, hoje.
Voltando a "Blue Kettle", o que
aconteceu foi que o homem, como
o próprio texto da peça, se deixou
tomar pelo que havia de essencial
-o vírus- em sua ação. Ele queria dar um golpe. Mas não. Ele, como suas palavras e como a peça
toda, se deixou tomar pela tristeza
-ou pela busca da mãe.
Mas basta de "absurdo" (no caso, relativo a "teatro de absurdo",
gênero de autores como Samuel
Beckett). E vai uma tentativa de
descrição: "Blue Heart" é a reunião de dois textos curtos em que a
experimentação formal se engendra no próprio conteúdo.
"Blue Kettle", o segundo texto,
quer dizer "chaleira triste" -ou
"coisa triste", em tradução livre.
"Heart's Desire", ou desejo do coração, é o primeiro texto. O segundo é um drama, como se viu, e o
primeiro é comédia, uma farsa.
Caryl Churchill, uma autora inglesa tão festejada, em seu país,
como Harold Pinter, usou a linguagem para "desconstruir" relações familiares. Em "Blue Kettle",
trata-se da relação entre mãe e filho -do ponto de vista do filho.
Em "Heart's Desire", que é hilariante como a mais popular comédia que alguém já tenha visto, trata-se da relação entre pais e filhos
-do ponto de vista dos pais.
A mesma cena é apresentada incontáveis vezes, de formas diferentes: pai, mãe e uma tia esperam, em Londres, a chegada da filha que foi morar na Austrália. Os
pensamentos, os medos, as fantasias de cada um ganham forma
"absurda", enquanto esperam.
Ela pode chegar como um terrorista, que mata os três. Pode chegar como lésbica. Pode ter morrido num acidente. Pode chegar, em
passagem inteiramente "absurda", como um avestruz.
As fantasias dão vazão a todo tipo de "coup de théâtre", golpe de
teatro, em sequência que faz gargalhar até uma platéia de brasileiros -sem domínio total, supõe-se, do inglês. Ao mesmo tempo em que aprofunda, camada a
camada, os personagens.
Em suma, e buscando outra vez
fugir do "absurdo" a que o texto
arrasta, "Blue Heart" é uma estranha combinação de teatro experimental e teatro de entretenimento.
O melhor dos dois mundos.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|