São Paulo, sexta, 22 de maio de 1998

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TEATRO
Churchill faz rir e pensar com o "absurdo'

NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

Derek, um homem que busca uma mãe, entre várias, diz em inglês a uma delas: "Blue did blue you blue meet blue other. Blue glad blue all blue blue well. Maybe it's time to blue a move".
"Blue" ou triste, em inglês, ou azul, é a palavra que, aos poucos, corrompeu o diálogo, o discurso. Tomou conta. É um vírus.
Derek havia criado, supostamente, um golpe contra velhinhas. Ele se faz passar por filho delas. Escolhe as que decidiram doar um filho. Forja documentos e se faz passar pelo filho.
Seria, diz ele a certa altura, uma forma de tirar dinheiro delas. Mas não é, afinal. Derek é uma "coisa triste" atrás de uma mãe.
Nada é claro, neste texto "absurdo" que é "Blue Kettle", o segundo de dois textos curtos reunidos sob o título "Blue Heart", coração triste, de Caryl Churchill.
A peça, dada como a melhor de 97 pelo jornal inglês "The Independent", fez duas apresentações em São Paulo, terça e quarta-feira, no Youth Arts Festival. Foi uma chance de ver o melhor da dramaturgia inglesa, hoje.
Voltando a "Blue Kettle", o que aconteceu foi que o homem, como o próprio texto da peça, se deixou tomar pelo que havia de essencial -o vírus- em sua ação. Ele queria dar um golpe. Mas não. Ele, como suas palavras e como a peça toda, se deixou tomar pela tristeza -ou pela busca da mãe.
Mas basta de "absurdo" (no caso, relativo a "teatro de absurdo", gênero de autores como Samuel Beckett). E vai uma tentativa de descrição: "Blue Heart" é a reunião de dois textos curtos em que a experimentação formal se engendra no próprio conteúdo.
"Blue Kettle", o segundo texto, quer dizer "chaleira triste" -ou "coisa triste", em tradução livre. "Heart's Desire", ou desejo do coração, é o primeiro texto. O segundo é um drama, como se viu, e o primeiro é comédia, uma farsa.
Caryl Churchill, uma autora inglesa tão festejada, em seu país, como Harold Pinter, usou a linguagem para "desconstruir" relações familiares. Em "Blue Kettle", trata-se da relação entre mãe e filho -do ponto de vista do filho.
Em "Heart's Desire", que é hilariante como a mais popular comédia que alguém já tenha visto, trata-se da relação entre pais e filhos -do ponto de vista dos pais.
A mesma cena é apresentada incontáveis vezes, de formas diferentes: pai, mãe e uma tia esperam, em Londres, a chegada da filha que foi morar na Austrália. Os pensamentos, os medos, as fantasias de cada um ganham forma "absurda", enquanto esperam.
Ela pode chegar como um terrorista, que mata os três. Pode chegar como lésbica. Pode ter morrido num acidente. Pode chegar, em passagem inteiramente "absurda", como um avestruz.
As fantasias dão vazão a todo tipo de "coup de théâtre", golpe de teatro, em sequência que faz gargalhar até uma platéia de brasileiros -sem domínio total, supõe-se, do inglês. Ao mesmo tempo em que aprofunda, camada a camada, os personagens.
Em suma, e buscando outra vez fugir do "absurdo" a que o texto arrasta, "Blue Heart" é uma estranha combinação de teatro experimental e teatro de entretenimento. O melhor dos dois mundos.



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