São Paulo, sexta, 22 de maio de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GASTRONOMIA
Os temperos de Dadá


A mais célebre cozinheira da Bahia dá início hoje a festival gastronômico de sete dias. onde serve especialidades com o camarão à vinagrete


NINA HORTA
especial para a Folha

Fiquei esperando por Dadá sentada à mesa de um dos restaurantes do clube, reservado especialmente para seus fogões e comilança. A mesa não passa de um pranchão coberto por uma tonelada dourada de camarões secos da Bahia e à sua volta trabalham as ajudantes. O serviço é arrancar a cabeça e a cauda. Jogar a cauda fora, guardar as cabeças, mas primeiro retirar os olhos.
É um trabalho automático e feliz. Ploct, cabeça de um lado, corpo do outro, rabinho fora. Arrancar os olhos num gesto rápido, olhos que vão se juntar aos rabinhos, no lixo. Enquanto isso se joga, também, conversa fora. "Conhece Elisa? É amiga minha." Fico ajudando, o mundo rola lá fora e aquela copa, aquela mesa, cada vez mais, são a Bahia.
O cheiro do camarão seco é definitivamente baiano, a intimidade generosa é baiana, feita de achegos, mansidão, carinhos, troca rápida de palavras mais altas, entre risos. E um ar que não sei definir, como de nobres mulheres, de raça orgulhosa, de um saber estar na vida, de uma alegria feita de singelezas e muita dignidade.
"Oi, negona, quer um avental?" É a voz de Dadá chegando, toda arrumada, cheirosa e gostosa. Turbante branco de noviça rebelde, vestido estampado, ouro e pedras. Virou estrela. Tem tanto jeito ou mais, para estrela, quanto para cozinheira. E são duas profissões que não se dão muito bem, excluem-se, quase sempre. Gata Borralheira e Cinderela. Dadá vai dando conta das duas.
Dá ordens para as meninas sem tirar a risada do rosto, e começam a obedecê-la andando de lá para cá, sem alvoroço, do almoxarifado aos isopores cheios de gelo.
Dadá entende imediatamente o que quer a fotógrafa. Um fundo branco, luz e muito ingrediente difícil de se achar aqui. Providencia mesa lá fora e manda cobrir com folhas de bananeira como se esse ritual de reportagem fosse diário. Deve ser. Agradece aos céus pelo sol que apareceu e beneficiou enormemente o dourado do dendê. As farinhas sobem, em montes, de puba ou carimã molhada ou seca, a farinha-de-guerra, o polvilho doce, o azedo, e o feijão fradinho, o amendoim, o milho branco, o amarelo.
"Sumiu a arruda, esquecemos a arruda", lamenta-se nervosa uma ajudante. A arruda, a arruda! Sem ela o mau olhado, o impuro. Dadá não bate uma pestana. "Veio. Não estamos vendo, mas o cheiro está aqui. Só pode ter vindo."
Pegamos um enorme robalo no gelo que ela arruma com gosto ao lado de camarões, lagostas e pitus.
"Dadá, chega de produção, me conte umas coisas. Que pratos vão fazer para o festival, basta de estrelices, vamos à história."
"Ai, um pouco de tudo, negona, um bufê enorme, farto, você vai lá e se serve de tudo e volta quantas vezes quiser." Vai me dando um incrível desejo de acarajés, de praia e de batida de pitanga. Disfarço tentando descobrir os fornecedores de tanto ingrediente bom. Sempre sonhei com este dendê grosso, dourado, bom de tomar de cálice, como um vinho. E aqueles pitus de rio, de jereré. E sururus? Temos sururus?
A fotógrafa tenta o melhor ângulo do peixe, de pé, sobre um banquinho. Adora comer, mas se arrepia toda ao toque do peixe.
Dadá me olha, cúmplice no amor ao bicho e ajeita com carinho o robalo rijo.
É o que mais gosto na Dadá. A sensualidade com que trata o que cozinha. Um prazer genuíno, um deslumbre com a beleza das escamas, o colorido de uma pimentinha rajada, o interior de nácar de uma concha.
"Eu trouxe carne também, negona. Carne-seca e carne-de-sol. Aqui vocês confundem. Carne-de-sol pode ser feita até em casa. Pegue uma alcatra, dê uns talhos, lambuze de sal, dentro de uma bacia. A salmoura escorre, aos poucos. Quando sentir que a água já mingou, dependure para escorrer, num lugar sem mosca. Logo vira carne-de-sol. Guarde no freezer e vá tirando aos bocados. Eu gosto frita na manteiga."
Daí em diante não consegui mais um olho no olho com Dadá. O pique foi aumentando, começaram a limpar os camarões frescos, a pensar no cozimento do polvo. O celular chama de Salvador, era preciso lembrar de mandar gravar a novela, a promotora da festa chamava de São Paulo mesmo, e quando me vi estava secretariando a Dadá. "Ah, Paulo, o marido? Tudo bem. Dadá está no outro telefone. Chegando... chegando..."
"Alô, meu nego. Ah, sei... não veio trabalhar... mas ela é do turno da noite, nego. Huum, entendi. Eles querem dinheiro pra cimento ou tijolo? Pergunte... pode dar."
Desliga e pisca para mim. "Coisa de mulher. A gente tem que estar em todo lugar. A grande mãe, o tronco. Sabe como é marido. Bom para democracias, lidar com povo. Bateu na casa, na construção, na cozinha, é com a gente mesmo."
Cozinha, construção, restaurantes, funcionários, viagens, repórteres, polvo, lulas fritas, é tudo com a Dadá, generala de saias, de forno e fogão e garra.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.