|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTE E PSIQUIATRIA
Grupo vocal integra terapia da loucura
CARLOS BOZZO JUNIOR
especial para a Folha
O Segundo Encontro Musical Cidadãos Cantantes, que marcou no
início da semana o Dia Nacional
de Luta Antimanicomial, reafirmou a arte como parte integrante
de uma nova fase no tratamento
manicomial.
Na última segunda-feira, o Coral
Cênico de Saúde Mental se reuniu
a grupos vocais como o Coral do
Centro Cultural São Paulo, grupo
Vox Mix, Coral Alphaville e grupo
Canto Livre para comemorar a data e propor uma reforma psiquiátrica geral, em defesa da cidadania
plena aos usuários dos serviços de
saúde mental.
Essa reforma se daria não só pela
assistência clássica psiquiátrica e
psicológica, mas também incluiria
outras abordagens, que buscam
entender melhor o fenômeno do
sofrimento mental.
Descobriu-se, então, o canal da
cultura, que permeia a vida das
pessoas, permitindo que elas descubram outros códigos de troca e
de relações. A arte passa a ser a
grande facilitadora da expressão
desses outros códigos e se descobrem alguns talentos, embora esse
não seja o objetivo fundamental
do movimento.
O Centro Cultural São Paulo,
palco do encontro, também sediou uma exposição de fotografias
que revelam closes do cotidiano,
emoções, descobertas e as produções artísticas do Coral Cênico de
Saúde Mental. "A Cidadania em
Preto-e-Branco" reuniu fotos de
Sosô Parma, Carlos Rennó e Alexandre Milito Neto.
Também foi autografado o livro
de poesias "O Vôo das Borboletas", que conta, em versos escritos pelos integrantes do coral,
uma trajetória de luta, sobrevivência, sonhos e projetos de cada um.
A obra foi lançada em 96 na Câmara Municipal de São Paulo e teve sua primeira tiragem esgotada.
"As pessoas do coral têm produzido músicas a partir das poesias desse livro, que não tem um
rigor com a gramática, mas acaba
sendo uma pérola, em termos de
criação, poesia e sonoridade. Sem
falar de quanto essa produção pode revelar de cada um, os seus desejos e as suas histórias. Botar isso
no papel, para essas pessoas, foi,
de uma certa forma, terapêutico",
explicou Isabel Cristina Lopes, 36,
psicóloga, sanitarista e idealizadora do coral, que é formado por
cerca de trinta integrantes, quase
todos usuários de serviços de saúde mental.
Ela também coordena as oficinas
de poesia que resultaram no livro.
"Esse é o segundo ano em que
realizamos o encontro de produções de pessoas "diferentes'. Para
não se tornar um gueto, onde só
discriminados apresentem seus
trabalhos, convidamos corais de
universidades e outras instituições, no intuito de promover uma
troca de trabalhos. Apesar das dificuldades apresentadas pelas pessoas participantes do Coral Cênico
de Saúde Mental, conseguimos
um produto, em termos de produção musical, muito satisfatório",
diz Isabel.
Terapia
O movimento nasceu em 87,
quando uma grande bandeira de
luta aglutinou usuários do sistema
de saúde mental, familiares e trabalhadores contrários a toda forma agressiva e violenta de tratamento, que até então marcava a
saúde mental no país.
"Particularmente no Estado de
São Paulo, que representa o maior
parque asilar do Brasil, esse movimento é muito importante. Quando houve a mobilização na cidade
de Bauru, em 87, em que as pessoas foram às ruas munidas de arte, mascaradas, cantando, dançando e carregando panos coloridos, elas não queriam chocar a população, mas seduzi-la, e foi o que
aconteceu", afirma Isabel.
"A arte, portanto, vem acompanhando o processo da luta há algum tempo. E em nosso trabalho
no coral ela é introduzida menos
como uma questão de sensibilização e mais como valor terapêutico.
Essa luta não é romântica a ponto
de propor o fim do hospital psiquiátrico, mas a sua substituição.
Os serviços substitutivos estão
sempre preocupados com o vínculo familiar, para não retirar a pessoa do seu meio, e assim não correr grandes riscos de estigmatização."
"Existem muitos serviços pensados, como internação em hospital geral, tratamento ambulatorial
em unidades básicas de saúde, que
são os postos de saúde próximos
às casas das pessoas, unidades de
hospital-dia ou centros de atenção
psicossocial, para atendimentos
diurnos, em que a pessoa pode ser
observada e tratada de forma mais
vigilante durante todo o período
do dia, retornando para casa à
noite, além dos centros de convivência e cooperativas, que são espaços muito bem sucedidos, em
que existem várias atividades artísticas.
Foi em um espaço desses que
nasceu o coral. Assim, o coral tem
por objetivo levar a idéia de que a
luta antimanicomial não é uma luta de caráter apenas político e técnico, mas uma luta por excelência
cultural", explica Cristina.
Crianças
Criado em junho de 1992, o Coral Cênico de Saúde Mental conta
com o apoio do Centro Cultural
São Paulo, da ONG SOS Saúde
Mental, do Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia
Social da USP, da Escola Municipal de Iniciação Artística e do Instituto de Saúde do Estado de São
Paulo.
Formado por pessoas com idades que variam de 21 a 65 anos, no
grupo se encontram diagnósticos
de esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva, deficiência mental,
neuroses graves, psicoses afetivas
e quadros associados.
Todas as segundas-feiras, às 9h,
o grupo ensaia, no Centro Cultural São Paulo, sob a supervisão cênica de Isabel Cristina e do maestro Júlio César Giúdice Maluf, 32,
responsável pela supervisão musical do coral.
"Encontrei facilidades e algumas dificuldades. Entre as facilidades, posso citar a disponibilidade dos integrantes para o trabalho.
Não houve resistência a propostas
apresentadas, porque não há crítica ou preconceito da parte deles.
Isso acontece, não pela condição
das pessoas do grupo, mas pelo espaço, que é muito interessante.
Eles acabam entrando de cabeça", diz Maluf.
"É, mais ou menos, como trabalhar com crianças. Você pode
pirar em alguma coisa, e elas embarcam. Pessoas ditas normais
questionam muito, raciocinam
demais sobre o porquê das coisas.
Já, quanto às dificuldades, encontrei algumas limitações apresentadas por eles, como coordenação
motora e fala. Então, trabalho em
cima dessas dificuldades, sem tanta exigência de perfeição em afinação ou ritmo."
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|