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Arte destrói a comunicação comum e instauraa incomum
JOÃO FRAYZE-PEREIRA
especial para a Folha
As manifestações plásticas dos
chamados "doentes mentais" são
classificadas contemporaneamente entre as formas de "arte bruta". São manifestações singulares,
frequentemente realizadas em segredo para encantamento dos
criadores que não recorrem aos
códigos consolidados e que dispensam o aplauso.
E, quando uma exposição ocorre
em clínicas, galerias ou museus, o
discurso implicado frequentemente é articulado em torno das
oposições conceituais "arte/não-arte", "saúde/doença".
No entanto, essa discussão torna-se ociosa, quase sempre resultando na questão desgastada do
"valor terapêutico da arte", se
não forem considerados os antecedentes históricos de sua aparição. Com efeito, entre os séculos
18 e 19, a loucura moderna é definida visualmente: no asilo ela só
existe como ser visto.
Trata-se de um momento específico da ordem positiva da observação-classificação, que oferece a
estranheza dos corpos dos insanos
à visão de um público ávido de diversão: em fins-de-semana, milhares de pessoas pagavam para
ver espetáculos nos quais os loucos eram "monstros". Com as
promessas de conhecimento que o
asilo passou a oferecer, tal costume desapareceu. É nesse contexto
que as produções plásticas dos pacientes começam a ser recolhidas
pelos médicos como material para
diagnóstico. E é na década de 20
deste século que seu valor estético
é reconhecido pelos artistas.
Mas é em 1945 que o pintor Dubuffet lança a idéia de "arte bruta", qualificando artisticamente
as criações dos não-profissionais,
inclusive dos psiquiatrizados. Entretanto, introduzido nos espaços
destinados aos ritos de celebração
da arte, o louco ganha sacralidade:
torna-se artista. E, se dessa maneira perde o estigma que há séculos
o acompanha, sua obra rompe
com a loucura. Na moldura de
uma exposição legitimada pela
cultura, a "expressão dos loucos"
ganha o selo de "obra de arte".
Incorporada pela cultura e
transfigurada pela aura que envolve suas obras, a loucura arrisca-se
a ser silenciada, dependendo da
percepção do espectador. Comentando uma exposição, em Washington, Octavio Paz escreveu:
"Tais obras não fazem pensar na
clausura em que está encerrado o
esquizofrênico: são ressurreições
do mundo perdido de seu passado
e os caminhos secretos para chegar a um outro. Que é esse outro
mundo? Difícil saber".
São muitos os criadores que afirmam não serem eles próprios os
responsáveis por suas obras, que
confessam terem trabalhado sob a
égide de espíritos ancestrais. E isso
significa que aos mortos é atribuído um papel fecundo na realização
do processo criativo, projeto misterioso cujo sentido não se esgota
no fazer objetos estéticos, projeto
que para o criador tem o sentido
de um "sagrado ofício".
Sendo tais objetos um ponto de
irrupção dos ancestrais numa sociedade que rompeu toda relação
funcional ou simbólica com a
morte, o que Paz percebe é que tais
obras não são mero conhecimento
do homem interior, nem apenas
subversão poética, mas algo mais
antigo: "objetos de adoração-abominação". Nessa medida, não
vê sentido na expressão "arte-loucura", pois a arte transcende as fronteiras, ignora a diferença
entre primitivos e modernos.
Nas composições desses artistas
psiquiatrizados, cumprem-se as
exigências da arte: destruir a comunicação comum e instaurar
uma comunicação incomum. A
esse respeito, é emblemática a
obra de Jacky Garnier, "Tapessaria Interrompida..." (Coleção Art
Brut-Lausanne). Iniciada em 1976,
atinge centenas de metros de comprimento, segundo um modo de
associação livre, plástico e mental,
que questiona os meios convencionais de difusão.
Costurando a morte da obra ao
de sua própria vida, Garnier interroga a instituição da arte. "Como
expor uma vida?" -é a sua questão. Reabilitando a morte como
instância de um futuro anterior, o
artista liberta-se da inerência animal ao presente: a morte é o que
atapeta a vida por dentro, recurso
imaginário, abertura à "outra cena" (Freud), "entremundo" ao
qual a arte bruta nos introduz de
maneira explosiva.
João Frayze-Pereira é professor do Instituto de
Psicologia da USP
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