São Paulo, sexta, 22 de maio de 1998

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Arte destrói a comunicação comum e instauraa incomum

JOÃO FRAYZE-PEREIRA
especial para a Folha

As manifestações plásticas dos chamados "doentes mentais" são classificadas contemporaneamente entre as formas de "arte bruta". São manifestações singulares, frequentemente realizadas em segredo para encantamento dos criadores que não recorrem aos códigos consolidados e que dispensam o aplauso.
E, quando uma exposição ocorre em clínicas, galerias ou museus, o discurso implicado frequentemente é articulado em torno das oposições conceituais "arte/não-arte", "saúde/doença".
No entanto, essa discussão torna-se ociosa, quase sempre resultando na questão desgastada do "valor terapêutico da arte", se não forem considerados os antecedentes históricos de sua aparição. Com efeito, entre os séculos 18 e 19, a loucura moderna é definida visualmente: no asilo ela só existe como ser visto.
Trata-se de um momento específico da ordem positiva da observação-classificação, que oferece a estranheza dos corpos dos insanos à visão de um público ávido de diversão: em fins-de-semana, milhares de pessoas pagavam para ver espetáculos nos quais os loucos eram "monstros". Com as promessas de conhecimento que o asilo passou a oferecer, tal costume desapareceu. É nesse contexto que as produções plásticas dos pacientes começam a ser recolhidas pelos médicos como material para diagnóstico. E é na década de 20 deste século que seu valor estético é reconhecido pelos artistas.
Mas é em 1945 que o pintor Dubuffet lança a idéia de "arte bruta", qualificando artisticamente as criações dos não-profissionais, inclusive dos psiquiatrizados. Entretanto, introduzido nos espaços destinados aos ritos de celebração da arte, o louco ganha sacralidade: torna-se artista. E, se dessa maneira perde o estigma que há séculos o acompanha, sua obra rompe com a loucura. Na moldura de uma exposição legitimada pela cultura, a "expressão dos loucos" ganha o selo de "obra de arte".
Incorporada pela cultura e transfigurada pela aura que envolve suas obras, a loucura arrisca-se a ser silenciada, dependendo da percepção do espectador. Comentando uma exposição, em Washington, Octavio Paz escreveu: "Tais obras não fazem pensar na clausura em que está encerrado o esquizofrênico: são ressurreições do mundo perdido de seu passado e os caminhos secretos para chegar a um outro. Que é esse outro mundo? Difícil saber".
São muitos os criadores que afirmam não serem eles próprios os responsáveis por suas obras, que confessam terem trabalhado sob a égide de espíritos ancestrais. E isso significa que aos mortos é atribuído um papel fecundo na realização do processo criativo, projeto misterioso cujo sentido não se esgota no fazer objetos estéticos, projeto que para o criador tem o sentido de um "sagrado ofício".
Sendo tais objetos um ponto de irrupção dos ancestrais numa sociedade que rompeu toda relação funcional ou simbólica com a morte, o que Paz percebe é que tais obras não são mero conhecimento do homem interior, nem apenas subversão poética, mas algo mais antigo: "objetos de adoração-abominação". Nessa medida, não vê sentido na expressão "arte-loucura", pois a arte transcende as fronteiras, ignora a diferença entre primitivos e modernos.
Nas composições desses artistas psiquiatrizados, cumprem-se as exigências da arte: destruir a comunicação comum e instaurar uma comunicação incomum. A esse respeito, é emblemática a obra de Jacky Garnier, "Tapessaria Interrompida..." (Coleção Art Brut-Lausanne). Iniciada em 1976, atinge centenas de metros de comprimento, segundo um modo de associação livre, plástico e mental, que questiona os meios convencionais de difusão.
Costurando a morte da obra ao de sua própria vida, Garnier interroga a instituição da arte. "Como expor uma vida?" -é a sua questão. Reabilitando a morte como instância de um futuro anterior, o artista liberta-se da inerência animal ao presente: a morte é o que atapeta a vida por dentro, recurso imaginário, abertura à "outra cena" (Freud), "entremundo" ao qual a arte bruta nos introduz de maneira explosiva.


João Frayze-Pereira é professor do Instituto de Psicologia da USP



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