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CINEMA/ESTRÉIA
"A COMILANÇA"
Longa-metragem do cineasta italiano ganha cópia restaurada
Fábula filosófica de Ferreri
tem atualidade espantosa
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Quanto maior o prazer,
mais próximos da morte nos
achamos. O prazer é, inclusive, indissociável da morte. Era o que
sustentava Georges Bataille, o
poeta surrealista francês.
Algo talvez não muito diferente
do que parece sustentar o cineasta
italiano Marco Ferreri em "A Comilança".
Tomemos o magro argumento:
quatro amigos (um cozinheiro,
um piloto de aviões, um juiz e um
jornalista de TV) encerram-se numa mansão, dispostos a comer até
a morte. A eles se juntará, por
pouco tempo, um grupo de prostitutas e, durante toda a festa, a
gorda Andréa.
Estamos um pouco como Buñuel em "O Anjo Exterminador".
Com a diferença que em Buñuel
as pessoas não conseguem sair da
casa em que se encontram. Em "A
Comilança", ao contrário, todos
se encerram na mansão voluntariamente.
Logo que chegam, um dos quatro amigos ergue uma cabeça de
bovino e profere o célebre "ser ou
não ser" de Shakespeare. Uma
frase bem colocada, pois tudo para esses homens consiste nisso:
questionar o sentido da existência. Por que estamos aqui? E, sobretudo, para quê?
Questões para as quais encontram uma única resposta capaz de
exorcizar sua angústia: para o
prazer, para o gozo.
Se é assim, que o prazer seja levado ao paroxismo, que engendre
a morte. E que a morte, a extinção,
se confunda com o prazer, misture-se a ele, torne-se indissociável.
Que o final de um e o início da outra tornem-se finalmente indistinguíveis.
Filosofia mórbida
É claro que essa maneira de ver
as coisas instaura sua própria
contradição. Uma festa que prepare a morte é necessariamente
mórbida, fato para o qual nos chamam a atenção a fotografia e os
cenários.
Mas não no caso desses quatro
homens. Ferreri trabalha com
atores "para cima", que transmitem como poucos a alegria do cinema: Ugo Tognazzi, Philippe
Noiret, Marcello Mastroianni e
Michel Picolli. Nada no comportamento dos personagens leva a
crer em homens especialmente
mórbidos.
Ao contrário, eles se portam como filósofos diante de questões
cruciais. Se prazer e morte são
duas delas, é inadiável vinculá-los. Trata-se, portanto, de impedir
a angústia e a dor da morte e de levar o prazer ao extremo.
Uma leitura frequente do filme
nos anos 70 via essa grande comilança como espécie de alegoria
suicidária da sociedade de consumo.
É possível que Ferreri pensasse
mesmo nisso (e os toques francamente surrealistas referendam essa idéia). Mas os tempos mudaram. Isto é, a sociedade de consumo não morreu, longe disso: integrou-se ao cotidiano. Consumir
tornou-se hoje uma necessidade
(pois equivale a criar trabalho,
emprego, a criar a sustentabilidade da ordem social).
Morrer, ao contrário, tornou-se
uma idéia longínqua. A ciência
nos promete a cura de todos os
males, uma espécie de quase
imortalidade, para daqui a poucas
décadas. Basta deixar o cigarro,
fazer bastante ginástica, preservar-se e, para o homem de classe
média, o fantasma da morte está
afastado.
Ou, ao contrário, mais presente:
na sociedade da saúde e das academias, tudo gira em torno da
morte e da necessidade de exorcizá-la. Daí saltar mais aos olhos,
hoje em dia, não o lado alegórico,
mas francamente realista dessa
fábula.
Seus personagens perguntam-se o que significa viver, o que é ser
um homem, de que matéria somos feitos (sim, trata-se de um filme escatológico, mas não apenas
pelas menções ao excremento), o
que serão o ser e o não ser.
É por esse viés de fábula filosófica que "A Comilança" se mostra
hoje de uma atualidade espantosa. E talvez um filme maior até do
que foi nos anos 70.
A Comilança
La Grande Bouffe
Direção: Marco Ferreri
Produção: Itália/França, 1973
Com: Ugo Tognazzi, Philippe Noiret,
Marcello Mastroianni, Andréa Ferréol
Quando: a partir de hoje no Cinesesc
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