São Paulo, sexta-feira, 22 de junho de 2001

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CINEMA/ESTRÉIA

"A COMILANÇA"

Longa-metragem do cineasta italiano ganha cópia restaurada

Fábula filosófica de Ferreri tem atualidade espantosa

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Quanto maior o prazer, mais próximos da morte nos achamos. O prazer é, inclusive, indissociável da morte. Era o que sustentava Georges Bataille, o poeta surrealista francês.
Algo talvez não muito diferente do que parece sustentar o cineasta italiano Marco Ferreri em "A Comilança".
Tomemos o magro argumento: quatro amigos (um cozinheiro, um piloto de aviões, um juiz e um jornalista de TV) encerram-se numa mansão, dispostos a comer até a morte. A eles se juntará, por pouco tempo, um grupo de prostitutas e, durante toda a festa, a gorda Andréa.
Estamos um pouco como Buñuel em "O Anjo Exterminador". Com a diferença que em Buñuel as pessoas não conseguem sair da casa em que se encontram. Em "A Comilança", ao contrário, todos se encerram na mansão voluntariamente.
Logo que chegam, um dos quatro amigos ergue uma cabeça de bovino e profere o célebre "ser ou não ser" de Shakespeare. Uma frase bem colocada, pois tudo para esses homens consiste nisso: questionar o sentido da existência. Por que estamos aqui? E, sobretudo, para quê?
Questões para as quais encontram uma única resposta capaz de exorcizar sua angústia: para o prazer, para o gozo.
Se é assim, que o prazer seja levado ao paroxismo, que engendre a morte. E que a morte, a extinção, se confunda com o prazer, misture-se a ele, torne-se indissociável. Que o final de um e o início da outra tornem-se finalmente indistinguíveis.

Filosofia mórbida
É claro que essa maneira de ver as coisas instaura sua própria contradição. Uma festa que prepare a morte é necessariamente mórbida, fato para o qual nos chamam a atenção a fotografia e os cenários.
Mas não no caso desses quatro homens. Ferreri trabalha com atores "para cima", que transmitem como poucos a alegria do cinema: Ugo Tognazzi, Philippe Noiret, Marcello Mastroianni e Michel Picolli. Nada no comportamento dos personagens leva a crer em homens especialmente mórbidos.
Ao contrário, eles se portam como filósofos diante de questões cruciais. Se prazer e morte são duas delas, é inadiável vinculá-los. Trata-se, portanto, de impedir a angústia e a dor da morte e de levar o prazer ao extremo.
Uma leitura frequente do filme nos anos 70 via essa grande comilança como espécie de alegoria suicidária da sociedade de consumo.
É possível que Ferreri pensasse mesmo nisso (e os toques francamente surrealistas referendam essa idéia). Mas os tempos mudaram. Isto é, a sociedade de consumo não morreu, longe disso: integrou-se ao cotidiano. Consumir tornou-se hoje uma necessidade (pois equivale a criar trabalho, emprego, a criar a sustentabilidade da ordem social).
Morrer, ao contrário, tornou-se uma idéia longínqua. A ciência nos promete a cura de todos os males, uma espécie de quase imortalidade, para daqui a poucas décadas. Basta deixar o cigarro, fazer bastante ginástica, preservar-se e, para o homem de classe média, o fantasma da morte está afastado.
Ou, ao contrário, mais presente: na sociedade da saúde e das academias, tudo gira em torno da morte e da necessidade de exorcizá-la. Daí saltar mais aos olhos, hoje em dia, não o lado alegórico, mas francamente realista dessa fábula.
Seus personagens perguntam-se o que significa viver, o que é ser um homem, de que matéria somos feitos (sim, trata-se de um filme escatológico, mas não apenas pelas menções ao excremento), o que serão o ser e o não ser.
É por esse viés de fábula filosófica que "A Comilança" se mostra hoje de uma atualidade espantosa. E talvez um filme maior até do que foi nos anos 70.


A Comilança
La Grande Bouffe
    
Direção: Marco Ferreri
Produção: Itália/França, 1973
Com: Ugo Tognazzi, Philippe Noiret, Marcello Mastroianni, Andréa Ferréol
Quando: a partir de hoje no Cinesesc




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