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LIVRO/LANÇAMENTO
"MEIA VIDA"
Prêmio Nobel de literatura ganha mais uma tradução em português
Novo romance de Naipaul captura existências estéreis
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
"Meia Vida", novo romance do Prêmio Nobel
de literatura do ano passado, V. S.
Naipaul, agrega, de modo ostensivo, embora nem sempre satisfatório, três livros num só: uma narrativa indiana, um interlúdio londrino e um relato africano.
A seção indiana descreve as
complicações por que passa o pai
do protagonista. Chandran é um
jovem brâmane que se revolta
contra o sistema de castas de seu
país. Sua inspiração é Mahatma
Gandhi, mas sua motivação é
bem mais pedestre. Ele queima livros de autores ingleses principalmente porque não liga muito para
literatura. Desposa uma moça de
casta inferior mais por golpe do
destino e astúcia da jovem. Abandona o cargo de funcionário público, refugiando-se no templo de
seus antepassados e fazendo voto
de silêncio, sobretudo para escapar a denúncias de malversação.
Um encontro com o romancista
inglês Somerset Maugham sela
sua sorte. Intrigado com o hindu
que aparentemente renegou sua
origem para viver como mendigo
no pátio do templo, o escritor lhe
pergunta: "Você está feliz?". O
brâmane escreve, num bloco de
papel: "Dentro do meu silêncio,
eu me sinto totalmente livre. Felicidade é isso". Maugham enxerga
uma grande verdade espiritual
naquilo que é apenas a descrição
de um fato: o voto de silêncio desobriga Chandran de responder
por suas ações no Departamento
de Impostos Territoriais.
Inspirado pelas palavras do indiano, Maugham escreve o best-seller "O Fio da Navalha". O brâmane fica famoso. Levado pelas
circunstâncias e não motivado
por uma chama mística, consagra-se como "sadhu", um santo
asceta. Há vários níveis de ironia
aqui. Nenhum deles cai para o
burlesco, pois uma densa camada
de melancolia envolve o episódio.
Mas o verdadeiro herói do romance é Willie Somerset Chandran (seu segundo nome foi dado
em homenagem ao escritor inglês), o filho do hindu. Willie ganha uma bolsa de estudos para
cursar a faculdade em Londres.
Estamos na segunda metade dos
anos 50. A Inglaterra recebe grande leva de imigrantes, principalmente das Antilhas, e é palco de
violentos conflitos raciais, fomentados pela intolerância branca.
Há um paralelo literário aqui,
semelhante, no subtexto satírico,
à descrição da origem de "O Fio
da Navalha". Um amigo de Willie
organiza uma festa para a qual
procura, à Proust, criar um "buquê social".
Dentre as figuras do ramalhete
estão um acadêmico inglês especialista em caçar mulheres ricas,
um poeta taciturno que se compraz em espezinhar o interlocutor
incauto, um editor marxista alcoólatra e falastrão, um antilhano
obsedado em caldear seus genes
negros e uma colombiana que se
casou com um homossexual porque ele, como ela, era "rico e branco há muitas gerações". O estudante circula por tal "intelligentsia" inter-racial de esquerda, procurando uma companheira e tentando publicar um livro.
As duas coisas ocorrem ao mesmo tempo. O livro é publicado pelo editor marxista, sendo malhado pela crítica, mas chamando a
atenção de uma jovem portuguesa chamada Ana. Willie e Ana se
apaixonam. Sem perspectivas
com o fim do curso universitário,
o indiano resolve seguir a moça
para a colônia dela na África, uma
Moçambique não nomeada, dando inicio à terceira e última parte
do romance.
Nessa seção, temos, como no
início, uma narrativa em primeira
pessoa. No princípio, o pai de Willie conta sua história ao filho;
desta vez, Willie descreve à irmã
Saronji sua estada de 18 anos na
África. O romance novamente
muda de registro, passando para
o tom jornalístico dos livros de
viagem que consagraram Naipaul. E, se o modelo literário a ser
ironizado, na primeira parte, é o
das ficções de caráter místico como "O Fio da Navalha" e, na segunda, o buquê social de Proust, a
afiliação agora é claramente com
"O Coração das Trevas", de Joseph Conrad.
Á África negra, oculta, fascinante e perigosa é o cenário onde Willie descobre a si mesmo, suas limitações e seu descontentamento, sua percepção de que metade
de sua vida se passara, a "melhor
parte", e que ele a desperdiçara.
Num dado momento, o indiano
vê uma naja presa numa garrafa,
suas presas ameaçando inutilmente os visitantes. Na tradição
indiana, a serpente "kundalini"
representa a energia dormente
que, ativada, possibilitaria a elevação espiritual. Presa ao pote, a naja de Willie é uma aberração estéril, o símbolo de sua estagnação.
Cabe a ele libertá-la se quiser, no
que seria uma hipotética continuação do romance, abandonar
essa sua "meia vida" e dedicar-se
a uma existência mais plena.
A costura entre as partes do romance é tão visível, assim como
seu final em aberto, que só podemos pensar que Naipaul quisesse
destacá-los. Vemos a obra com
suas engrenagens à mostra.
O tom muda tão radicalmente
do segundo para o terceiro segmento que o próprio protagonista
parece se transformar diante de
nós. Achamos, na segunda parte,
que ele encontrou o amor em
Ana, para depois descobrirmos,
na terceira, que sua verdadeira
paixão, se é que podemos chamá-la assim, surgiria depois. Naipaul
caminha no fio da navalha, mas
seu talento de prosador supera
também essa dificuldade.
Meia Vida
Half a Life
Autor: V. S. Naipaul
Tradutora: Isa Mara Lando
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28,50 (216 págs.)
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