São Paulo, sábado, 22 de junho de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

"MEIA VIDA"

Prêmio Nobel de literatura ganha mais uma tradução em português

Novo romance de Naipaul captura existências estéreis

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

"Meia Vida", novo romance do Prêmio Nobel de literatura do ano passado, V. S. Naipaul, agrega, de modo ostensivo, embora nem sempre satisfatório, três livros num só: uma narrativa indiana, um interlúdio londrino e um relato africano.
A seção indiana descreve as complicações por que passa o pai do protagonista. Chandran é um jovem brâmane que se revolta contra o sistema de castas de seu país. Sua inspiração é Mahatma Gandhi, mas sua motivação é bem mais pedestre. Ele queima livros de autores ingleses principalmente porque não liga muito para literatura. Desposa uma moça de casta inferior mais por golpe do destino e astúcia da jovem. Abandona o cargo de funcionário público, refugiando-se no templo de seus antepassados e fazendo voto de silêncio, sobretudo para escapar a denúncias de malversação.
Um encontro com o romancista inglês Somerset Maugham sela sua sorte. Intrigado com o hindu que aparentemente renegou sua origem para viver como mendigo no pátio do templo, o escritor lhe pergunta: "Você está feliz?". O brâmane escreve, num bloco de papel: "Dentro do meu silêncio, eu me sinto totalmente livre. Felicidade é isso". Maugham enxerga uma grande verdade espiritual naquilo que é apenas a descrição de um fato: o voto de silêncio desobriga Chandran de responder por suas ações no Departamento de Impostos Territoriais.
Inspirado pelas palavras do indiano, Maugham escreve o best-seller "O Fio da Navalha". O brâmane fica famoso. Levado pelas circunstâncias e não motivado por uma chama mística, consagra-se como "sadhu", um santo asceta. Há vários níveis de ironia aqui. Nenhum deles cai para o burlesco, pois uma densa camada de melancolia envolve o episódio.
Mas o verdadeiro herói do romance é Willie Somerset Chandran (seu segundo nome foi dado em homenagem ao escritor inglês), o filho do hindu. Willie ganha uma bolsa de estudos para cursar a faculdade em Londres. Estamos na segunda metade dos anos 50. A Inglaterra recebe grande leva de imigrantes, principalmente das Antilhas, e é palco de violentos conflitos raciais, fomentados pela intolerância branca.
Há um paralelo literário aqui, semelhante, no subtexto satírico, à descrição da origem de "O Fio da Navalha". Um amigo de Willie organiza uma festa para a qual procura, à Proust, criar um "buquê social".
Dentre as figuras do ramalhete estão um acadêmico inglês especialista em caçar mulheres ricas, um poeta taciturno que se compraz em espezinhar o interlocutor incauto, um editor marxista alcoólatra e falastrão, um antilhano obsedado em caldear seus genes negros e uma colombiana que se casou com um homossexual porque ele, como ela, era "rico e branco há muitas gerações". O estudante circula por tal "intelligentsia" inter-racial de esquerda, procurando uma companheira e tentando publicar um livro.
As duas coisas ocorrem ao mesmo tempo. O livro é publicado pelo editor marxista, sendo malhado pela crítica, mas chamando a atenção de uma jovem portuguesa chamada Ana. Willie e Ana se apaixonam. Sem perspectivas com o fim do curso universitário, o indiano resolve seguir a moça para a colônia dela na África, uma Moçambique não nomeada, dando inicio à terceira e última parte do romance.
Nessa seção, temos, como no início, uma narrativa em primeira pessoa. No princípio, o pai de Willie conta sua história ao filho; desta vez, Willie descreve à irmã Saronji sua estada de 18 anos na África. O romance novamente muda de registro, passando para o tom jornalístico dos livros de viagem que consagraram Naipaul. E, se o modelo literário a ser ironizado, na primeira parte, é o das ficções de caráter místico como "O Fio da Navalha" e, na segunda, o buquê social de Proust, a afiliação agora é claramente com "O Coração das Trevas", de Joseph Conrad.
Á África negra, oculta, fascinante e perigosa é o cenário onde Willie descobre a si mesmo, suas limitações e seu descontentamento, sua percepção de que metade de sua vida se passara, a "melhor parte", e que ele a desperdiçara.
Num dado momento, o indiano vê uma naja presa numa garrafa, suas presas ameaçando inutilmente os visitantes. Na tradição indiana, a serpente "kundalini" representa a energia dormente que, ativada, possibilitaria a elevação espiritual. Presa ao pote, a naja de Willie é uma aberração estéril, o símbolo de sua estagnação. Cabe a ele libertá-la se quiser, no que seria uma hipotética continuação do romance, abandonar essa sua "meia vida" e dedicar-se a uma existência mais plena.
A costura entre as partes do romance é tão visível, assim como seu final em aberto, que só podemos pensar que Naipaul quisesse destacá-los. Vemos a obra com suas engrenagens à mostra.
O tom muda tão radicalmente do segundo para o terceiro segmento que o próprio protagonista parece se transformar diante de nós. Achamos, na segunda parte, que ele encontrou o amor em Ana, para depois descobrirmos, na terceira, que sua verdadeira paixão, se é que podemos chamá-la assim, surgiria depois. Naipaul caminha no fio da navalha, mas seu talento de prosador supera também essa dificuldade.


Meia Vida
Half a Life
   
Autor: V. S. Naipaul
Tradutora: Isa Mara Lando
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28,50 (216 págs.)




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