São Paulo, quinta-feira, 22 de julho de 2004

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Imperialismo mágico


Intelectual francês causa polêmica mundial ao acusar "Harry Potter" de fazer apologia do capitalismo

Episódio gerou resposta inflamada dos ingleses e até o jornal americano "New York Times" entrou na história



SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Ele já foi chamado de anticristo por evangélicos, aprovado como boa literatura pelo Vaticano e acusado de ser produto de um plágio. Seus cinco livros foram traduzidos em 60 idiomas de 200 países e renderam mais de US$ 1 bilhão a sua autora. Mas por esta Harry Potter não esperava.
De acordo com artigo vindo da academia francesa -de onde mais?-, o bruxinho seria lacaio do imperialismo, um tutor capitalista, e a função da série literária infanto-juvenil seria formar futuros consumidores. O texto motivou réplica igualmente inflamada, segundo a qual Potter é um ícone da antiglobalização, uma Naomi Klein de condão na mão.
Aí, os britânicos entraram na história, e a briga toda ganhou um toque extra de rixa entre países. E até um intelectual italiano meteu a colher. Foi quando o "New York Times" resolveu jogar letras no ventilador, republicando o texto original nos Estados Unidos.
Começando pelo começo. No dia 4 de junho, o jornal francês "Le Monde" trazia artigo intitulado "Harry no país do mercado triunfante", assinado por Ilias Yocaris, professor de teoria literária e literatura francesa do Instituto Universitário de Treinamento de Professores de Nice.
No texto, o acadêmico diz, entre outras coisas, que, a despeito de toda a magia e fantasia que envolvem as histórias escritas pela britânica J.K. Rowling, o universo de Harry Potter é um universo capitalista. E justifica de maneira engenhosa.
Hogwarts é uma escola privada de feitiçaria, escreve; seus alunos são consumidores vorazes, loucos pelos produtos mais recentes das melhores marcas, fabricadas por multinacionais; seu diretor tem de brigar constantemente com o Estado, representado por funcionários obtusos e incompetentes, como o ministro da Magia.
Há uma invasão, diz ele, de estereótipos neoliberais num conto de fadas. "Como no totalitarismo orwelliano, este capitalismo tenta modelar não apenas o mundo real, como também a imaginação dos consumidores-cidadãos."
Foi o que bastou para que o país que, em vez de mesa-redonda de futebol tem painel de discussão intelectual-esportiva (como comprovou este repórter in loco na Copa de 1998), abraçasse o debate. Dias depois, entre centenas de cartas, o "Monde" publicou uma réplica de Isabelle Smadja.
No texto, a autora, que ensina filosofia no Lycée Loritz de Nancy e escreveu o livro "Harry Potter - As Razões do Sucesso" (ed. Contraponto), afirma que o mago de Hogwarts é, na verdade, "o primeiro herói ficcional da geração Seattle, antiglobalização, antimercado livre, pró-Terceiro Mundo".
Dela discordou um colega seu, o teórico libertário italiano Alberto Mingardi, que disse ficar com a opinião de sua irmã de 13 anos: "Depois de ler as 800 páginas de "HP e a Ordem de Fênix" em dois dias, ela me falou o que tinha aprendido com o livro: "Que você não deve confiar no governo'".
Entra em cena o escritor Ben Macintyre- autor da biografia "O Napoleão do Crime" (Cia. das Letras), sobre Adam Worth, o ladrão que inspirou o personagem Moriarty, arqui-rival de Sherlock Holmes-, que descasca a lenha no "Times" de Londres.
Publicado no sábado, "Filho de Seattle, inimigo da globalização?" atribui a polêmica à falta de humor dos franceses e sua incapacidade de entender o sucesso da série literária. Diz que o pobre Potter conseguiu escapar de dementadores, goblins e até do Lord Voldemort, mas encontrou o pior adversário: o intelectual francês.
No dia seguinte, a página de opinião do "New York Times" publicou o artigo original de Ilias Yocaris, em versão reduzida e com o título "Harry Potter, mago do mercado", e o ciclo começou de novo, desta vez nos EUA.
Desde domingo, os milhares de sites e blogs dedicados à série entraram em estado Defcon 4 de atenção: "traidor", "estúpido", "insensível" são os adjetivos mais publicáveis sobre o francês.
Talvez o mais sincero tenha sido Clark Venable, na lista de discussão do próprio "New York Times": "Meu filho de seis anos e eu lemos juntos todas as noites um livro do Harry Potter. Achei que este artigo [o original do francês] faz uma análise interessante e certeira", começa. "OK, não entendi as duas primeiras frases do texto , mas o resto parece bacana."
Agora, só falta a autora se manifestar. Com fortuna de US$ 1 bilhão, é pouco provável que J.K. Rowling se dê ao trabalho...


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