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ARTIGO
Harry no país do mercado triunfante
ILIAS YOCARIS
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"
Com a série Harry Potter, a escritora J. K. Rowling conseguiu a façanha de trazer o encanto
de volta ao mundo: o leitor vê se
desenrolando diante de seus
olhos um universo mágico, onde
existem carros que voam, sortilégios que fazem a pessoa vomitar
lesmas, árvores que dão socos, livros que mordem a mão de seus
proprietários, elfos domésticos,
retratos que brigam entre eles e
dragões com caudas pontiagudas.
Assim, a priori não existe nada
de comum entre o mundo de
Harry e o mundo comum de nossa percepção. Nada, claro, se excetuarmos um detalhe: como o nosso, o mundo dele é capitalista.
Hogwarts é uma escola de feitiçaria privada, e seu diretor não
pára de brigar com o Estado, representado pelo inepto ministro
Cornelius Fudge, pelo ridículo
funcionário Percy Weasly e pela
odiosa inspetora Dolores Ombrage. Os aprendizes de feiticeiros
são consumidores que sonham
adquirir objetos mágicos de alta
tecnologia, como varas de condão
"de alta performance" ou vassouras voadoras "de marca".
Hogwarts não é somente uma
escola, portanto, mas um mercado, e visivelmente suculento: submetidos a um clamor publicitário
incessante, os alunos só estão
realmente felizes quando podem
gastar seu dinheiro. Existe toda
espécie de tráfico entre os estudantes, e a autora insiste pesadamente nas possibilidades de elevação social para os jovens que
vierem a enriquecer graças ao comércio de produtos mágicos.
E o quadro se completa com
queixas rituais sobre a rigidez e
incompetência dos funcionários
públicos. O conservadorismo
destes contrasta fortemente com
a inventividade, audácia e espírito
dos empresários, cujos méritos J.
K. Rowling não pára de entoar.
Por exemplo, Bill Weasly, que
trabalha no banco Gringotts, é
sempre retratado como o exato
oposto de seu irmão, o funcionário público Percy: o primeiro é jovem, dinâmico, criativo e usa roupas que "não destoariam em um
show de rock". O segundo é estúpido, obtuso e executa com inépcia seu trabalho de regulador estatal; a grande obra de sua carreira
consiste em um relatório sobre
"normas padrão para a espessura
dos fundos de caldeirão".
Essa invasão de estereótipos
neoliberais no mundo dos contos
de fada tem efeitos consideráveis
sobre a descrição dos personagens e do mundo no qual evoluem. O universo de Harry Potter
oferece uma verdadeira caricatura do modelo social anglo-saxão:
sob o verniz da regulamentação e
dos rituais coletivos impostos pela tradição, a micro-sociedade de
Hogwarts se apresenta como uma
selva impiedosa, onde reina o individualismo, a concorrência exacerbada e o culto à violência.
O condicionamento psicológico
dos aprendizes de feiticeiros se
baseia claramente numa cultura
de confronto: disputas entre os
alunos para obter, por exemplo, o
prestigioso título de prefeito; a
disputa entre as quatro "casas" de
Hogwarts para conquistar pontos
no concurso anual; a disputa periódica entre escolas de feiticeiros
pela Copa de Ferro; e, por fim, a
disputa final e sangrenta entre as
forças do bem e as forças do mal.
Esse estado de guerra permanente resulta, em especial, na redefinição do papel das estruturas
institucionais: diante do número
de conflitos cada vez mais violentos que irrompem, as instituições
não têm possibilidade, ou vocação, para proteger os indivíduos
contra as ameaças que os cercam
por todos os lados. Assim, o Ministério da Magia fracassa miseravelmente em seu combate ao mal,
e as restrições regulamentares da
vida escolar, paradoxalmente, impedem que Harry e seus amigos
se defendam dos ataques que sofrem de forma incessante.
Sem assistência, os aprendizes
precisam lutar sozinhos para sobreviver em um ambiente hostil, e
os mais fracos (como Cedric Diggory, amigo de Harry) serão inexoravelmente eliminados.
Todos esses fatores exercem influência determinante sobre o
conteúdo do ensino dispensado
aos jovens de Hogwarts. O mínimo que se pode dizer é que o ensino é unidimensional. Os programas educativos de Hogwarts são
orientados de maneira muito precisa no plano didático: só contam
as disciplinas capazes de transmitir aos alunos um saber prático
passível de exploração imediata.
Isso não surpreende, já que a
prestigiosa escola visa acima de
tudo formar indivíduos competitivos no mercado de trabalho e
capazes de lutar contra as forças
do mal. Pode-se constatar que as
matérias artísticas terminaram
eliminadas do currículo descrito
pela autora, e o ensino das humanas é fortemente desvalorizado:
os estudantes passam apenas por
um curso infeliz de história literária, que os faz bocejar de tédio.
Harry parece, em diversos momentos, servir como resumo em
forma humana, sem dúvida involuntário, do projeto educativo e
social do capitalismo neoliberal.
Como o totalitarismo descrito
por Orwell, esse capitalismo tenta
moldar à sua imagem não só o
mundo real, mas o imaginário
dos cidadãos consumidores. A
mensagem implícita que as crianças leitoras de um texto como esse
recebem, "grosso modo", é a de
que "vocês podem imaginar
quantos mundos fictícios, quantas sociedades paralelas e quantos
sistemas educativos quiserem,
mas todos eles serão regidos pelas
leis do mercado". O mínimo que
se pode dizer, à luz do sucesso da
obra, é que as jovens gerações não
esquecerão a lição.
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