São Paulo, quinta-feira, 22 de julho de 2004

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ARTIGO

Harry no país do mercado triunfante

ILIAS YOCARIS
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"

Com a série Harry Potter, a escritora J. K. Rowling conseguiu a façanha de trazer o encanto de volta ao mundo: o leitor vê se desenrolando diante de seus olhos um universo mágico, onde existem carros que voam, sortilégios que fazem a pessoa vomitar lesmas, árvores que dão socos, livros que mordem a mão de seus proprietários, elfos domésticos, retratos que brigam entre eles e dragões com caudas pontiagudas.
Assim, a priori não existe nada de comum entre o mundo de Harry e o mundo comum de nossa percepção. Nada, claro, se excetuarmos um detalhe: como o nosso, o mundo dele é capitalista.
Hogwarts é uma escola de feitiçaria privada, e seu diretor não pára de brigar com o Estado, representado pelo inepto ministro Cornelius Fudge, pelo ridículo funcionário Percy Weasly e pela odiosa inspetora Dolores Ombrage. Os aprendizes de feiticeiros são consumidores que sonham adquirir objetos mágicos de alta tecnologia, como varas de condão "de alta performance" ou vassouras voadoras "de marca".
Hogwarts não é somente uma escola, portanto, mas um mercado, e visivelmente suculento: submetidos a um clamor publicitário incessante, os alunos só estão realmente felizes quando podem gastar seu dinheiro. Existe toda espécie de tráfico entre os estudantes, e a autora insiste pesadamente nas possibilidades de elevação social para os jovens que vierem a enriquecer graças ao comércio de produtos mágicos.
E o quadro se completa com queixas rituais sobre a rigidez e incompetência dos funcionários públicos. O conservadorismo destes contrasta fortemente com a inventividade, audácia e espírito dos empresários, cujos méritos J. K. Rowling não pára de entoar.
Por exemplo, Bill Weasly, que trabalha no banco Gringotts, é sempre retratado como o exato oposto de seu irmão, o funcionário público Percy: o primeiro é jovem, dinâmico, criativo e usa roupas que "não destoariam em um show de rock". O segundo é estúpido, obtuso e executa com inépcia seu trabalho de regulador estatal; a grande obra de sua carreira consiste em um relatório sobre "normas padrão para a espessura dos fundos de caldeirão".
Essa invasão de estereótipos neoliberais no mundo dos contos de fada tem efeitos consideráveis sobre a descrição dos personagens e do mundo no qual evoluem. O universo de Harry Potter oferece uma verdadeira caricatura do modelo social anglo-saxão: sob o verniz da regulamentação e dos rituais coletivos impostos pela tradição, a micro-sociedade de Hogwarts se apresenta como uma selva impiedosa, onde reina o individualismo, a concorrência exacerbada e o culto à violência.
O condicionamento psicológico dos aprendizes de feiticeiros se baseia claramente numa cultura de confronto: disputas entre os alunos para obter, por exemplo, o prestigioso título de prefeito; a disputa entre as quatro "casas" de Hogwarts para conquistar pontos no concurso anual; a disputa periódica entre escolas de feiticeiros pela Copa de Ferro; e, por fim, a disputa final e sangrenta entre as forças do bem e as forças do mal.
Esse estado de guerra permanente resulta, em especial, na redefinição do papel das estruturas institucionais: diante do número de conflitos cada vez mais violentos que irrompem, as instituições não têm possibilidade, ou vocação, para proteger os indivíduos contra as ameaças que os cercam por todos os lados. Assim, o Ministério da Magia fracassa miseravelmente em seu combate ao mal, e as restrições regulamentares da vida escolar, paradoxalmente, impedem que Harry e seus amigos se defendam dos ataques que sofrem de forma incessante.
Sem assistência, os aprendizes precisam lutar sozinhos para sobreviver em um ambiente hostil, e os mais fracos (como Cedric Diggory, amigo de Harry) serão inexoravelmente eliminados.
Todos esses fatores exercem influência determinante sobre o conteúdo do ensino dispensado aos jovens de Hogwarts. O mínimo que se pode dizer é que o ensino é unidimensional. Os programas educativos de Hogwarts são orientados de maneira muito precisa no plano didático: só contam as disciplinas capazes de transmitir aos alunos um saber prático passível de exploração imediata.
Isso não surpreende, já que a prestigiosa escola visa acima de tudo formar indivíduos competitivos no mercado de trabalho e capazes de lutar contra as forças do mal. Pode-se constatar que as matérias artísticas terminaram eliminadas do currículo descrito pela autora, e o ensino das humanas é fortemente desvalorizado: os estudantes passam apenas por um curso infeliz de história literária, que os faz bocejar de tédio.
Harry parece, em diversos momentos, servir como resumo em forma humana, sem dúvida involuntário, do projeto educativo e social do capitalismo neoliberal.
Como o totalitarismo descrito por Orwell, esse capitalismo tenta moldar à sua imagem não só o mundo real, mas o imaginário dos cidadãos consumidores. A mensagem implícita que as crianças leitoras de um texto como esse recebem, "grosso modo", é a de que "vocês podem imaginar quantos mundos fictícios, quantas sociedades paralelas e quantos sistemas educativos quiserem, mas todos eles serão regidos pelas leis do mercado". O mínimo que se pode dizer, à luz do sucesso da obra, é que as jovens gerações não esquecerão a lição.


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