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São Paulo, segunda-feira, 22 de setembro de 2003

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NELSON ASCHER

O Império contra-atacado

Foi uma semana importante a que passou.
Domingo, dia 14, num clima emocionalmente carregado pelo assassinato da ministra de Relações Exteriores Anna Lindh (defensora ardente do "sim"), a Suécia foi às urnas decidir se adotaria o euro. A maioria votou contra. Para os brasileiros, acostumados, por um lado, a usar sucessivamente o cruzeiro, o cruzeiro novo, o cruzado, o real e, por outro, a calcularem em dólares, a mudança rejeitada soa desimportante. Grande equívoco: a adoção da moeda comum constitui uma delegação decisiva da autogestão nacional a instâncias remotas e pouco representativas, pois a União Européia assume cada vez mais o aspecto de um império onde duas potências centrais, a França e a Alemanha, ditam aos membros menores ou menos abastados regras econômicas que elas mesmas não se sentem obrigadas a cumprir.
O império em questão resulta da convergência de certos interesses nacionais.
A França gostaria de ser uma superpotência e toda a sua retórica acerca de "multilateralismo" não passa de fachada. Nem está em seus planos ver, por exemplo, o Brasil ou a Índia converterem-se em pólos alternativos e independentes de influência. À terra de Asterix, porém, falta quase tudo o que faz uma superpotência: tamanho, população, Forças Armadas de verdade, dinamismo econômico etc. Ela dispõe tão somente de ambição e de um lugar cativo entre os "cinco grandes" no Conselho de Segurança da ONU, único motivo pelo qual promove a organização.
A Alemanha, embora menos ambiciosa, detinha alguns dos recursos necessários, sobretudo, até recentemente, uma economia (a terceira do planeta) saudável. Na primeira metade do século 20, os alemães, quando resolviam intrometer-se na política internacional, faziam-no com o auxílio de blindados. Dissuadidos disso em 1945, retraíram-se por quatro ou cinco décadas. Embora ainda hoje não se saiba direito qual o caminho que seguirão, tais dilemas não os impediram de emprestar seu peso demográfico e econômico aos desígnios franceses.
Em poucas palavras, para o casal franco-alemão, na Europa ideal a economia seria gerida por Berlim, e a política estrangeira, por Paris. Aos países do norte caberia recolherem-se à insignificância de suas dimensões e, cumprindo nordicamente as regras espartanas que só valem para eles, financiarem a anuência silenciosa (e os votos) das nações do sul e do leste.
A maioria dos suecos, além de rejeitarem os planos acima, afirmou que não estava disposta a subvencioná-los. O resultado do plebiscito se mostra mais inesperado quando se considera que o governo e todo o "establishment" político social-democrata, a intelectualidade, a mídia e o empresariado investiram pesadamente no "sim". Ademais, o euro e outros estratagemas destinados a consolidar a União Européia são geralmente vistos como de esquerda, e seu opositores, como reacionários lunáticos. No entanto a rejeição sueca foi indiscutivelmente esquerdista e popular.
Outro país que segue guardando suas distâncias em relação ao continente unificado é a Inglaterra. E, se Tony Blair simpatiza com o euro, seu "atlanticismo", ou seja, a aliança com os EUA, o contrapõe frontalmente às aspirações hegemônicas da diplomacia francesa. Ninguém fez tanto para compeli-lo a se dobrar à eurofilia antiamericana quanto a BBC, uma emissora que, paga pelo contribuinte, transformou-se num verdadeiro partido político, na oposição (não eleita) de esquerda ao "New Labour". Desmentida em cada um de seus prognósticos funestos a respeito da "vietnamização" da guerra de libertação do Iraque, a BBC, através de seu repórter Andrew Gilligan, procurou em seguida desmoralizar o governo com acusações que uma comissão parlamentar de inquérito provou serem falsas. Na semana passada, Gilligan teve de se desculpar diante dos parlamentares. Mais que desmoralizada, a arrogante corporação acabou desmascarada e seu futuro está agora em dúvida.
No entretempo, o comentarista mais famoso do mais prestigioso jornal liberal norte-americano, Thomas Friedman, do "New York Times", descobriu algo que não era novo. Em tempos de guerra, um país qualquer pode se aliar a um lado, ao lado oposto ou procurar o difícil equilíbrio da neutralidade. Manter a neutralidade implica, entre outras coisas, afastar-se o máximo possível do conflito e ficar quieto. Ao dizer que a França (e, por extensão, o proto-império continental) nem se aliou aos EUA, nem ficou neutra, Friedman confirmou o que já sabiam os milhões de turistas norte-americanos que, neste verão, preferiram passar suas férias em outros lugares.
Naturalmente, foi devido a esse antagonismo que o secretário de defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, encorajou a nova Europa (formada pelos povos que viveram sob a tirania soviética) a desafiar a velha Europa franco-germânica. Não surpreende, portanto, que, enquanto esta, não tendo conseguido resgatar o carrasco de Bagdá, empenha-se atualmente em salvar a pele do cacique do "Arafatistão", três ex-líderes daquela (Árpád Göncz, da Hungria, Vaclav Havel, da República Tcheca, e Lech Walesa, da Polônia, heróis reconhecidos da independência de seus respectivos países) publicaram um manifesto em que pediam que o continente se unisse na rejeição ao monarca stalinista da "Castrolândia".
Tomados em conjunto, esses eventos indicam que, abusando da carta antiamericana, tanto franceses e alemães como o grosso da elite continental comprometeram a realização de um projeto imperial cujo próximo passo, a Constituição européia, provavelmente tropeçará como o euro na Suécia.



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